sábado, 17 de setembro de 2016

O passageiro

O senhor olhava para o nada. Na realidade, era esse mesmo nada que o consumia. Mas, o que é o nada? O nada é o mesmo. A mesma cena todos os dias, os mesmos anúncios, a mesma demora. Afinal, era somente isso que ele possuía. A mesmice de seu cotidiano vazio.
      Seus trapos velhos continuavam a empoeirar. Seu corpo continuava a exprimir odores indesejados. Os fios de seu cabelo continuavam desalinhados. E seu olhar continuava vazio, triste. Estava ele, um senhor já de seus quarenta anos, sentado em um dos bancos da rodoviária. Mas, infelizmente, ele não esperava nenhum ônibus. Afinal, não tinha para onde ir, nem para onde retornar. Não pertencia a lugar algum, nem ali, no lugar em que geralmente se sentava, fazia parte. Sua figura destoava dos demais. Era apenas mais um morador de rua, um homem sem rumo, qual vagava por entre almas ainda completas.
            Logo quando começara a sua vida como mendigo achava interessante notar o olhar das pessoas, a seu ver, comuns. Eram olhos com brilho e vivacidade, entretanto, sentia que esse brilho diminuía razoavelmente quando os olhares pairavam sobre sua pessoa maltrapilha. Isso o intrigava. Contudo, o principal motivo de observar os olhares era a esperança de retornar a ter aquele brilho. Voltar a pertencer a alguém. Porém, seu sonho singelo nunca fora realizado. Ele saiu de casa e nunca mais viu sua mulher e filhos. Ambos ele abandonou devido a ter perdido o trabalho, e, envergonhado pela demissão, resolveu sair para procurar emprego incansavelmente. Como não encontrou nenhum serviço retornou a sua casa depois de certo período. Mas, lá não havia restado mais ninguém. O novo morador dissera que os donos antigos venderam a residência e ele nada sabia sobre para onde foram. Sem um teto para se abrigar, caíra nas ruas da cidade, sozinho.
            E desde então estava ele ali, sentado naquele banco desconfortável. Depois de tantos anos, imaginava que sua mulher já o tinha considerado como falecido há muito.
            Enfim, naquela tarde chuvosa, estava ele, no mesmo canto, com um saco quase vazio de biscoitos de polvilho que ganhara de uma senhora acomodado em sua coxa. Ouvia, pela milésima vez naquele dia, o anúncio da prefeitura, pedindo para que os moradores de rua se encaminhassem para a assistência social. Ele achava aquilo uma hipocrisia. Se o governo quisesse tanto ajudar seus cidadãos desde o início, possivelmente não estaria sentado naquela cadeira há tanto tempo. Talvez, até tivesse se casado novamente. Quem sabe?
            Naquela tarde, sua cabeça doía muito e ele parecia irritar-se até mesmo com o barulho da chuva. Porém, demonstrava em seu exterior um semblante muito calmo. Afinal, não deveria gastar o pouco de sua energia com seus sentimentos. E, foi naquela mesma tarde, aparentemente comum, que um acontecimento o encantou e encheu seus olhos do brilho esquecido.
            - Olá. – disse a voz doce de uma garotinha, qual sentou-se à frente dele.
            - Está falando comigo?
            - Sim, com quem mais estaria?
            O homem olhou ao redor. Não havia ninguém, além dos dois, sentados na rodoviária. Estranhou a menina qual estava à sua frente. Primeiro, porque ela era pequena, suas pernas mal alcançam ao chão, balançando os pés de um lado para o outro. Segundo, seus olhos eram inusitados: não possuíam o brilho das outras pessoas que sempre passavam por ele, porém também não eram semelhantes ao seu. Deixando-lhe interessado em compreender aquele olhar. E, o principal: ela estava sozinha. “Ela está perdida? ”, perguntou-se.
            - O que quer? – indagou a garota.
            - O senhor está bem?
            - Sim, porque não estaria?
            - Parece doente...
            - Bem, estou com dor de cabeça.
            A menina negou.
            - Não digo doente nesse sentido. No outro sentido.
            - Outro... sentido?
            - Sim. Seu coração parece ferido.
           Coração? Ele não tinha problema no coração de acordo com seus conhecimentos. Então, depois de algum esforço, concluiu que a palavra se referia a outro sentido. Refletindo a respeito, indagou-se: que argumento ela tinha para falar sobre suas intimas emoções? Não conseguia encontrar sentido àquela conversa, mesmo assim, movido pela curiosidade, resolveu dar sequência ao diálogo.
            - Que tipo de dor?
            - Hum... – hesitou a menina – Você me parece sozinho. E sente muita saudade de alguém.
            Imediatamente o homem lembrou de seus dois filhos. Lembrou dos dois lhe abraçando após o fim do exaustivo expediente de serviço. Transportou-se para aquele tempo em que era abençoado por poder sorrir e sentiu o calor dos pequenos corpos inundá-lo, em contrapartida ao frio que realmente sentia pelo vento derivado da chuva.
            - Acertei... Você está chorando.
            Fazia muito tempo que não sentia lágrimas escorrerem de tal forma por seu rosto. Elas derramaram-se rapidamente e enchiam-lhe de sentimentos que pareciam ter sidos perdidos em um beco qualquer.
            - O que quer de mim, menina? – disse o homem o mais ríspido que conseguira, após ter limpado as lágrimas com a manga da blusa suja.
            - Não sei, o que você quer de si mesmo?
            - Está me deixando confuso.
            - Você está confuso. Vamos brincar? Finja que eu sou a vida. Pense em algo para dizer a ela.
            - A vida?
            - Sim, sim, a vida. Sabe o que essa palavra significa, não é?
            - Claro...  – Ele sabia o que significava, mas, o conceito era abstrato demais para que talvez pudesse estabelecer uma frase tão concreta em palavras. – Não sei o que dizer.
            - Qualquer coisa. Brinque comigo, tio! – insistiu ela.
            - Certo. Vida, você foi uma grande decepção.
            - Essa palavra é muito feia. Quero algo mais alegre.
            - Não tenho algo alegre a dizer sobre a vida.
            - Nada mesmo, tio?
            - Nada. Virei morador de rua aos vinte e cinco anos e estou nessa vida até hoje. Uma menina como você nunca irá entender como é viver assim.
            - Talvez não mesmo. Mas, tio, tenho certeza que mesmo nossas vidas tendo sido diferentes o tio ainda pode ouvir o som das gotas de água caindo do céu, não pode?
            - Sim, posso. E daí?
            A menina abriu um largo sorriso de satisfação antes de continuar:
            - Então é o suficiente para você ter algo belo e alegre a dizer sobre a vida.
            - Chuva?
            - Isso mesmo. Você consegue ver a beleza na chuva, tio?
            Pela primeira vez ele parou, moveu a cabeça para o lado e concentrou-se em ouvir o som da chuva caindo lá fora nas plataformas dos ônibus. Depois de observar muito atento, fechou os olhos e apenas ouviu seu som. O som que chegava aos seus ouvidos estava mesclado com a voz dos anúncios de embarque e desembarque, mas ele apurou a audição para fixar-se no barulho da natureza. Passageiros lá fora tinham dificuldades em carregar suas malas e protegerem-se da chuva, pois a maioria dos guarda-chuvas deformavam-se para o lado oposto do ideal com o vento e mais atrapalhavam do que protegiam.
             Entretanto, a concentração do morador de rua não estava ali, naquelas cenas cómicas e ao mesmo tempo trágicas. Estava no barulho. Ele aguçou os ouvidos enquanto olhava as gotas de águas despencando do céu acinzentado. E, surpreso, pela primeira vez, viu o quão belo era aquele som delicado, no qual nunca havia prestado atenção antes.
            Aquela cena e o som que penetrava em seu íntimo pareceu tornar-se cada vez mais distante. Sentiu-se como se seu corpo não pertencesse mais aquela cadeira. Não sentia mais a dureza do material do assento no qual sentava, nem o cheiro dos salgados da cantina lhe chegavam a narina. De súbito, sentiu-se tonto. Algo estava errado. Sua visão ficou turva. Observou a frente. A menina desaparecera. Como era possível? A menos de um minuto ela estava o encarando.
            A dor de cabeça aumentou. Seus ouvidos pareciam estar tampados com algodão, pois abafavam os sons da rodoviária, que se tornaram cada vez mais distantes de si. Percebeu que uma mulher – não conseguia distinguir se jovem ou idosa – aproximou-se dele e o chamou. Ouvia distante o tratamento por senhor, entretanto não compreendia sua fala. Os biscoitos caíram no chão e se esparramaram pelo chão. Contudo, não eram apenas os biscoitos, mas também o homem já estava no piso gélido. A mulher parecia continuar a chamá-lo. Sem nada compreender, ele tentou manter-se calmo. Porém, sua visão continuava ruim.
             “ Eu irei morrer”, pensou ele. “ Mas, onde está a menina? Eu preciso ajudá-la, ela me parece estar perdida”. Ele buscou manter seus sentidos o mais claro possível e ergueu a cabeça para olhar ao redor. Logo, observou: uma televisão, no pilar adiante, passava um filme. Uma pequena garota, semelhante àquela que conhecera, divertia-se na chuva, molhando seus cabelos e corpo. “ O que faz ela faz lá?”.
            - Senhor! Consegue me ouvir? Estou chamando a ambulância! Aguente firme! – escutou, mas já era tarde. A mulher, funcionária de uma das lanchonetes, estava agitada, tentando ajuda-lo de alguma forma, apesar de ser muito tarde.

            Sua cabeça tombou para o lado. O corpo esmagou os biscoitos do chão. A cena do filme terminou. Em sua mente, diante de seus últimos pensamentos, ele apenas se lembrou do barulho da chuva lá fora, dos olhos da menina, e da vida, uma beleza passada despercebida diante de seus olhos, esses incapazes de captar as coisas mais simples. Infelizmente, somente teve consciência disso perante o sopro que agora lhe era tirado para sempre. Toda essa beleza discreta ele nunca pudera enxergar, porque estava cego. Sempre estivera cego para o mais simples e o mais importante. 

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