Por
volta das duas horas da madrugada seus olhos estavam estalados como se
pertencessem não a um ser humano, mas sim a um gato ― talvez possamos imaginar,
caro leitor, a imagem de um gato negro, de íris amarelada, já que assim como o
gato preto o corpo do idoso se misturava com a escuridão da noite, enquanto lhe
ressaltava as pálpebras abertas.
Deitado ainda sobre o leito da cama o senhor
abriu os olhos e não conseguiu mais fechá-los com facilidade. Para ele, essa
sensação não era mais tanta novidade, porém ainda o incomodava. A insônia atingia-o há quase duas semanas e
parecia que uma batalha fora iniciada desde então.
Mesmo com os olhos abertos, os
ouvidos, na madrugada, tornavam-se tão apurados como os de um animal. Ele
escutava perfeitamente singelos barulhos executados durante o dia, mas perceptíveis
apenas pela noite silenciosa. O relógio da sala, a dilatação dos móveis de
madeira e a torneira que pingava no banheiro soavam como uma canção horrível,
de notas desconexas, que elevavam a irritação em sua mente já atordoada.
Suspirou. Buscou relaxar e tentar
adormecer novamente. Entretanto, sua técnica falhou mesmo após três tentativas.
Devido a ansiedade ― essa gerada justamente pela falta do sono ― seu corpo
rolava na cama, a fim de encontrar uma posição confortável suficiente para
presenteá-lo com um adormecer tranquilo. Ao seu lado, sua esposa repousava em
sono profundo e nem mesmo reparava na agitação de seu marido. Ele, percebendo
que poderia incomodá-la se continuasse insistindo naquela situação, decidiu
deixar a cama até que a vontade de dormir retornasse.
Vitor foi lentamente até a sala.
Acendeu as luzes brancas que lhe ofuscaram a visão a princípio. Nesse instante,
não mais poderia ser comparado ao gato preto do início, mas sim a um senhor bem
desperto, ainda que letárgico. Sem saber muito bem como reagir a insônia, que
lhe afetava os ânimos, sentou-se no sofá e tentou respirar conscientemente e de
forma calma. Nessas suas crises, além da ausência de sono, seu coração parecia
bater mais rápido, e um calor subia-lhe pelo corpo, apesar do friozinho da
madrugada. Em tais momentos ele acreditava que a respiração poderia ajudá-lo a
sentir-se melhor e, de fato, talvez essa fosse a única técnica que
verdadeiramente funcionava.
Contudo, com a respiração adequada
ele conseguia apenas resolver um dos problemas enquanto o outro se
intensificava. Até aquele momento a causa de suas insônias era uma incógnita.
Especialistas diziam ser a idade, todavia, deveria existir um motivo maior para
isso. Ao menos algo ele já sabia: tinha medo do escuro, da noite em sua
completude. Porém, esse medo foi gerado justamente pela falta de sono e não
fora a causa real do problema. A questão é que após uma noite mal dormida isso
crescia e estendia-se para as demais noites. Passava todo o dia cogitando se
ele conseguiria dormir ou não durante a noite e esses pensamentos invadiram-no
tanto, até que, por fim, ele criara repulsa pelo anoitecer. Agitava-se mais ao
ver o sol se pondo no horizonte. E, então, depois de adormecer, acordava
somente após de uma hora de sono como se a manhã tivesse chegado.
Um problema parecia levar a outro e
o círculo vicioso tornava-se cada vez mais indesejado. Nos últimos dias, antes
desse que narro a vocês leitores, Vitor tentara todas as alternativas
supostamente indicadas para proporcionar uma longa noite de sono. Experimentou tomar
suco de maracujá durante a janta, beber diversos tipos de chá antes de deitar,
especialmente o de camomila, não fazer exercícios físicos durante a noite e até
mesmo esqueceu-se dos cochilos durante a tarde. Porém, nenhuma das tentativas
mostraram-se realmente eficientes.
Pensando nisso, ele sentia-se
determinado a, nessa noite qual detalho aqui, descobrir a causa real de seu
sofrimento. Incentivado, levantou do sofá após alguns minutos, pegou um pequeno
aparelho de música e o ligou. Após o play, a música que tocava era a “Sonata ao
luar” de Beethoven. Sentou-se novamente e buscou manter os olhos fechados. Em
sua mente, um monologo se iniciava.
“A que temo? ”, perguntou-se. “A
noite”, respondeu. “ Temo algo mais? ”, insistiu. “Não. ”, afirmou a si mesmo. “Se
não tenho medo, devo ter alguma preocupação capaz de gerar toda essa ansiedade.
Mas, qual preocupação? Meus filhos estão casados e crescidos. Minha esposa não
tem problemas de saúde. Estou recebendo minha aposentadoria. Qual preocupação
devo ter? ”, cogitou. O raciocínio esgotava suas possibilidades. Contudo,
certamente existia algo que o preocupava. E esse algo não estava na superfície
de suas emoções. Estava ali! Escondido em algum lugar de seu peito e demonstrando-se
na forma de insônia!
Conforme a música foi avançando, ele
sentiu seu corpo relaxar um pouco. Os tons graves e lentos foram conduzindo
seus pensamentos adiante, que tentavam alcançar seu íntimo. Suas meditações
eram intercaladas com respirações longas. Então, aquela música, naquele
momento, remeteu-o a uma desilusão do mundo. A vida parecia não ter sentido se
vivenciada no meio da noite escutando Beethoven. Mesmo todas as suas memórias
mais felizes, pareciam tristes, melancólicas, como se tudo aquilo não tivesse
necessidade nenhuma de ter existido e tivessem sido apenas ações automáticas.
Teria sido mesmo relevante vivê-las? Todos aqueles anos de estudo, carreira,
trabalho incessante, casamento, filhos... Será que realmente isso tinha algum valor,
algum sentido? Se a vida lhe parecia desnecessária, o que diria da morte?
Ele estava velho, e tinha
consciência disso com seus 80 anos. Por uma questão cronológica, caro leitor,
você deve perceber que a existência dele estava, de fato, mais próxima da morte
do que da vida. Entretanto, ele estava vivo, e não tinha a experiência da
morte. “Como seria ela? ”, começou ele a imaginar. Se a vida não lhe parecia
tão bela ao som de Beethoven, talvez a morte lhe parecesse. Contudo, a
impossibilidade de definir alguma sensação próxima da morte, deixou-o incomodado
e aumentou sua ansiedade novamente.
O indefinido apavorou-o na calmaria
da sala de sua casa. Todavia, depois de alguns instantes conseguiu notar qual
era a causa que tanto o fazia sofrer. “É isso! ”, afirmou para si mesmo. Não
era a morte a causa de sua insônia, mas a impossibilidade de traduzi-la em emoções.
Sabendo a causa, ele desligou o
aparelhou da música. Observou novamente os ruídos da casa, desta vez, não mais
irritado, mas aliviado. Se para ele era impossível pensar na morte e em sua
incompreensão, bastaria não mais pensar nela, nem por breves momentos. Vitor
pensaria somente na vida daquele momento em diante. Em como, até naquele
momento perturbador da ausência de sono, havia vida e ele podia aproveitá-la. Ver
os pequenos detalhes de cada segundo de sua existência. Os ruídos da casa, da rua,
a luz que o iluminava e o sofá suave. Aquele era seu novo objetivo. Se pensar
na morte, mesmo inconscientemente lhe fazia sofrer, que pensasse em viver. E na
vida, encontraria todo o conforto que precisava para seguir adiante.
Deitou-se no sofá as três da
madrugada. No silêncio daquela noite, por fim, dormiu sem interrupções até a
manhã seguinte.
No dia posterior, ele com certeza
acordaria mais disposto, pronto a ver o sol no azul do céu, as nuvens a
espalharem-se como algodão e a felicidade de poder ouvir os pássaros cantando,
sem pensar no amanhã. Vitor não pensaria mais na noite, assim, o medo se
extinguiria junto com a ansiedade. Para ele, a partir daquela noite de insônia,
a noite e o dia se fundiriam como um só, partes apenas de um momento.
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