O
senhor olhava para o nada. Na realidade, era esse mesmo nada que o consumia.
Mas, o que é o nada? O nada é o mesmo. A mesma cena todos os dias, os mesmos anúncios,
a mesma demora. Afinal, era somente isso que ele possuía. A mesmice de seu cotidiano
vazio.
Seus trapos velhos continuavam a
empoeirar. Seu corpo continuava a exprimir odores indesejados. Os fios de seu
cabelo continuavam desalinhados. E seu olhar continuava vazio, triste. Estava
ele, um senhor já de seus quarenta anos, sentado em um dos bancos da
rodoviária. Mas, infelizmente, ele não esperava nenhum ônibus. Afinal, não
tinha para onde ir, nem para onde retornar. Não pertencia a lugar algum, nem
ali, no lugar em que geralmente se sentava, fazia parte. Sua figura destoava
dos demais. Era apenas mais um morador de rua, um homem sem rumo, qual vagava por
entre almas ainda completas.
Logo quando começara a sua vida como
mendigo achava interessante notar o olhar das pessoas, a seu ver, comuns. Eram
olhos com brilho e vivacidade, entretanto, sentia que esse brilho diminuía
razoavelmente quando os olhares pairavam sobre sua pessoa maltrapilha. Isso o
intrigava. Contudo, o principal motivo de observar os olhares era a esperança
de retornar a ter aquele brilho. Voltar a pertencer a alguém. Porém, seu sonho
singelo nunca fora realizado. Ele saiu de casa e nunca mais viu sua mulher e
filhos. Ambos ele abandonou devido a ter perdido o trabalho, e, envergonhado
pela demissão, resolveu sair para procurar emprego incansavelmente. Como não encontrou
nenhum serviço retornou a sua casa depois de certo período. Mas, lá não havia
restado mais ninguém. O novo morador dissera que os donos antigos venderam a
residência e ele nada sabia sobre para onde foram. Sem um teto para se abrigar,
caíra nas ruas da cidade, sozinho.
E desde então estava ele ali,
sentado naquele banco desconfortável. Depois de tantos anos, imaginava que sua
mulher já o tinha considerado como falecido há muito.
Enfim, naquela tarde chuvosa, estava
ele, no mesmo canto, com um saco quase vazio de biscoitos de polvilho que
ganhara de uma senhora acomodado em sua coxa. Ouvia, pela milésima vez naquele
dia, o anúncio da prefeitura, pedindo para que os moradores de rua se
encaminhassem para a assistência social. Ele achava aquilo uma hipocrisia. Se o
governo quisesse tanto ajudar seus cidadãos desde o início, possivelmente não
estaria sentado naquela cadeira há tanto tempo. Talvez, até tivesse se casado
novamente. Quem sabe?
Naquela tarde, sua cabeça doía muito
e ele parecia irritar-se até mesmo com o barulho da chuva. Porém, demonstrava
em seu exterior um semblante muito calmo. Afinal, não deveria gastar o pouco de
sua energia com seus sentimentos. E, foi naquela mesma tarde, aparentemente
comum, que um acontecimento o encantou e encheu seus olhos do brilho esquecido.
- Olá. – disse a voz doce de uma
garotinha, qual sentou-se à frente dele.
- Está falando comigo?
- Sim, com quem mais estaria?
O homem olhou ao redor. Não havia
ninguém, além dos dois, sentados na rodoviária. Estranhou a menina qual estava
à sua frente. Primeiro, porque ela era pequena, suas pernas mal alcançam ao
chão, balançando os pés de um lado para o outro. Segundo, seus olhos eram
inusitados: não possuíam o brilho das outras pessoas que sempre passavam por
ele, porém também não eram semelhantes ao seu. Deixando-lhe interessado em
compreender aquele olhar. E, o principal: ela estava sozinha. “Ela está
perdida? ”, perguntou-se.
- O que quer? – indagou a garota.
- O senhor está bem?
- Sim, porque não estaria?
- Parece doente...
- Bem, estou com dor de cabeça.
A menina negou.
- Não digo doente nesse sentido. No
outro sentido.
- Outro... sentido?
- Sim. Seu coração parece ferido.
Coração? Ele não tinha problema no
coração de acordo com seus conhecimentos. Então, depois de algum esforço,
concluiu que a palavra se referia a outro sentido. Refletindo a respeito,
indagou-se: que argumento ela tinha para falar sobre suas intimas emoções? Não
conseguia encontrar sentido àquela conversa, mesmo assim, movido pela
curiosidade, resolveu dar sequência ao diálogo.
- Que tipo de dor?
- Hum... – hesitou a menina – Você
me parece sozinho. E sente muita saudade de alguém.
Imediatamente o homem lembrou de
seus dois filhos. Lembrou dos dois lhe abraçando após o fim do exaustivo expediente
de serviço. Transportou-se para aquele tempo em que era abençoado por poder
sorrir e sentiu o calor dos pequenos corpos inundá-lo, em contrapartida ao frio
que realmente sentia pelo vento derivado da chuva.
- Acertei... Você está chorando.
Fazia muito tempo que não sentia
lágrimas escorrerem de tal forma por seu rosto. Elas derramaram-se rapidamente
e enchiam-lhe de sentimentos que pareciam ter sidos perdidos em um beco
qualquer.
- O que quer de mim, menina? – disse
o homem o mais ríspido que conseguira, após ter limpado as lágrimas com a manga
da blusa suja.
- Não sei, o que você quer de si
mesmo?
- Está me deixando confuso.
- Você está confuso. Vamos brincar?
Finja que eu sou a vida. Pense em algo para dizer a ela.
- A vida?
- Sim, sim, a vida. Sabe o que essa
palavra significa, não é?
- Claro... – Ele sabia o que significava, mas, o
conceito era abstrato demais para que talvez pudesse estabelecer uma frase tão
concreta em palavras. – Não sei o que dizer.
- Qualquer coisa. Brinque comigo,
tio! – insistiu ela.
- Certo. Vida, você foi uma grande
decepção.
- Essa palavra é muito feia. Quero
algo mais alegre.
- Não tenho algo alegre a dizer
sobre a vida.
- Nada mesmo, tio?
- Nada. Virei morador de rua aos
vinte e cinco anos e estou nessa vida até hoje. Uma menina como você nunca irá
entender como é viver assim.
- Talvez não mesmo. Mas, tio, tenho
certeza que mesmo nossas vidas tendo sido diferentes o tio ainda pode ouvir o
som das gotas de água caindo do céu, não pode?
- Sim, posso. E daí?
A menina abriu um largo sorriso de
satisfação antes de continuar:
- Então é o suficiente para você ter
algo belo e alegre a dizer sobre a vida.
- Chuva?
- Isso mesmo. Você consegue ver a
beleza na chuva, tio?
Pela primeira vez ele parou, moveu a
cabeça para o lado e concentrou-se em ouvir o som da chuva caindo lá fora nas
plataformas dos ônibus. Depois de observar muito atento, fechou os olhos e
apenas ouviu seu som. O som que chegava aos seus ouvidos estava mesclado com a
voz dos anúncios de embarque e desembarque, mas ele apurou a audição para
fixar-se no barulho da natureza. Passageiros lá fora tinham dificuldades em
carregar suas malas e protegerem-se da chuva, pois a maioria dos guarda-chuvas deformavam-se
para o lado oposto do ideal com o vento e mais atrapalhavam do que protegiam.
Entretanto, a concentração do morador de rua
não estava ali, naquelas cenas cómicas e ao mesmo tempo trágicas. Estava no
barulho. Ele aguçou os ouvidos enquanto olhava as gotas de águas despencando do
céu acinzentado. E, surpreso, pela primeira vez, viu o quão belo era aquele som
delicado, no qual nunca havia prestado atenção antes.
Aquela cena e o som que penetrava em
seu íntimo pareceu tornar-se cada vez mais distante. Sentiu-se como se seu
corpo não pertencesse mais aquela cadeira. Não sentia mais a dureza do material
do assento no qual sentava, nem o cheiro dos salgados da cantina lhe chegavam a
narina. De súbito, sentiu-se tonto. Algo estava errado. Sua visão ficou turva.
Observou a frente. A menina desaparecera. Como era possível? A menos de um
minuto ela estava o encarando.
A dor de cabeça aumentou. Seus
ouvidos pareciam estar tampados com algodão, pois abafavam os sons da
rodoviária, que se tornaram cada vez mais distantes de si. Percebeu que uma
mulher – não conseguia distinguir se jovem ou idosa – aproximou-se dele e o
chamou. Ouvia distante o tratamento por senhor, entretanto não compreendia sua
fala. Os biscoitos caíram no chão e se esparramaram pelo chão. Contudo, não
eram apenas os biscoitos, mas também o homem já estava no piso gélido. A mulher
parecia continuar a chamá-lo. Sem nada compreender, ele tentou manter-se calmo.
Porém, sua visão continuava ruim.
“ Eu irei morrer”, pensou ele. “ Mas, onde
está a menina? Eu preciso ajudá-la, ela me parece estar perdida”. Ele buscou
manter seus sentidos o mais claro possível e ergueu a cabeça para olhar ao
redor. Logo, observou: uma televisão, no pilar adiante, passava um filme. Uma
pequena garota, semelhante àquela que conhecera, divertia-se na chuva, molhando
seus cabelos e corpo. “ O que faz ela faz lá?”.
- Senhor! Consegue me ouvir? Estou
chamando a ambulância! Aguente firme! – escutou, mas já era tarde. A mulher,
funcionária de uma das lanchonetes, estava agitada, tentando ajuda-lo de alguma
forma, apesar de ser muito tarde.
Sua cabeça tombou para o lado. O
corpo esmagou os biscoitos do chão. A cena do filme terminou. Em sua mente,
diante de seus últimos pensamentos, ele apenas se lembrou do barulho da chuva
lá fora, dos olhos da menina, e da vida, uma beleza passada despercebida diante
de seus olhos, esses incapazes de captar as coisas mais simples. Infelizmente,
somente teve consciência disso perante o sopro que agora lhe era tirado para
sempre. Toda essa beleza discreta ele nunca pudera enxergar, porque estava
cego. Sempre estivera cego para o mais simples e o mais importante.

