segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Solidão compartilhada

Sempre, às cinco horas da tarde, ia caminhar na praça próxima a minha casa.  E, todos os dias, eu encontrava uma senhora, com o cabelo completamente branco, curto e o corpo já frágil, magro, que ela apoiava em uma bengala marrom. Geralmente, ela usava um short esverdeado e uma blusa branca, e pequenos sapatos fechados no pé. Nunca a vi lendo ou fazendo qualquer outra ação que não fosse apenas sentar-se. Sempre a encontrava no mesmo horário. Nós duas, na mesma hora, víamo-nos de longe na praça. Eu caminhava e ela permanecia sentada.
            Seus passos lentos acompanhados do auxílio a dirigiam até um banco isolado, debaixo da sombra de uma árvore. Ela acomodava-se no banco de cimento e ali ficava. A senhora observava as pessoas que passavam, os cães de rua, as crianças, os carros. Às vezes, ela passava a mão em sua cabeça em um sinal de pequenas angústias. Eu perguntava-me quais seriam seus pensamentos.
            Passei a observá-la cada vez mais. Não existia um único dia que ela não estivesse ali, sempre sozinha, assim como eu.
            Um dia, havia uma mãe com uma criança brincando na praça. A senhora, como de costume, ajeitou-se no banco, mas dessa vez voltou seu corpo para olhar o pequeno menino, o qual sorria e mostrava os brinquedos a mãe, que mal se esforçava para agradá-lo, mexendo somente no celular. Mesmo assim o garoto continuava a se divertir. E a senhora, também parecia divertir-se, apesar de singelamente. Pela primeira vez, em quase um mês que a via, ela deu um leve sorriso.
            Imaginei se a senhora relembrava de seus tempos de infância e por isso sorriu. Ou se somente ela havia achado engraçado a cena. Mas provavelmente, era algo mais nostálgico. Eu mesma, vendo tudo aquilo, pude ver as três partes da vida. As etapas pelas quais nós atravessamos, conduzidos pelo tempo. A infância, a vida adulta, e a velhice. E, incrivelmente, as três partes estavam reunidas naquele momento. O pequeno menino, eu, e a senhora. Nós três, pedaços diferentes, nos unimos delicadamente naquela praça, como iguais. E, ambos na solidão pessoal de cada momento. O menino, sem atenção completa da mãe, eu, caminhando solitariamente, e a senhora, sentada no banco desacompanhada. Nossas vidas se interligaram de uma forma sutil.
            Parei de caminhar. Maravilhada pela cena, apenas a observei. Talvez aquilo era a sensação de estar interligado a tudo e a todos. Ali, havia a exemplificação de como o que apelidamos de vida funciona. E o quanto o ser humano é frágil e pequeno para compreendê-la. Vivenciando aquele momento, eu tinha a consciência dele, e olhando para o menino, senti saudade do que um dia fui: criança. Olhando para a idosa, senti insegurança pelo que poderia ser.  A senhora, provavelmente tinha saudade da infância, da mocidade, e da vida adulta. Mas, diferente de mim, ou da senhora, o menino não pensava nisso. Ele apenas brincava. E provavelmente isso era o mais maravilhoso de ser criança. Sem preocupar-se com um tempo distante ou um tempo passado. Afinal, o máximo de passado que uma criança tem saudade é do dia anterior. Como gostaria de ser assim, pensei.
            Sempre que passava pela senhora, tinha vontade de sentar ao lado dela naquele banco e conversar. Ela deveria ter muito a dizer. E mesmo que não tivesse e somente falasse coisas sem sentido, para mim já estaria de bom tamanho. Eu não tinha muitas pessoas com quem conversar. Pensava que, talvez, unindo duas pessoas afundadas na solidão, pudéssemos fazer sair algo bonito. Nem que fosse uma conversa durante dez minutos, já seria suficiente, se fosse verdadeira. Porque o que mais faltava para mim eram conversas verdadeiras. Aquelas que você pode expor sua alma, pensamentos e conclusões e terá alguém para ouvi-las e entendê-las perfeitamente, ou pelo menos, tentar compreendê-las. Sentia que nesse mundo atual, isso faltava. Ninguém mais pergunta se está tudo bem com você querendo saber a verdade. As conversas são tão vazias. Tão superficiais. E, se por acaso, há a tentativa de aprofundá-las, não há tempo. Nunca há tempo! Falta tempo para pensar, conversar verdadeiramente, chorar, sorrir. Simplesmente falta tempo. De certa forma, pensei que aquela senhora poderia ter tempo. Poderia me escutar. Porém, tinha receio de me aproximar. Não sabia como realizar tal idealização. Talvez ela assustasse, ou me ignorasse, ou não quisesse conversar, quisesse apenas olhar em silêncio, como fazia todo dia.
            Dias passaram-se sem que eu me sentasse no banco. Ela via-me, eu a via, e nada dizíamos, apenas trocávamos olhares. Eu continuava a seguir meu caminho pela praça e a senhora a ficar sentada. Nós tínhamos uma solidão compartilhada. Uma sabia da solidão da outra e nisso nos refugiávamos. Não estávamos sozinhas. Mas também não estávamos juntas. Talvez apenas interligadas, como tudo no universo está. Nós éramos também parte daquele universo.
            Depois de uma semana, decidi, finalmente, tomar coragem de sentar-me no banco para conversarmos diretamente.
            Contudo, no dia de minha determinação eu não mais vi a senhora no banco. No outro, também não. Na outra semana, nada. Ela desapareceu da praça. Eu olhava para o banco sem a ver e ficava triste. O banco ali, sozinho, vazio. Perguntava-me o que teria acontecido com ela. Estaria doente? Ou algo pior até... morta? Como poderia saber? Eu queria descobrir, mas era impossível. Não sabia nem seu nome, apenas recordava de seu semblante que se misturava com a imagem dela da praça. Afinal, seu corpo já pertencia àquele lugar.
             Assim, semanas passaram e eu continuei sem vê-la. Aos poucos, minha vontade de ir à praça foi diminuindo. Apesar disso, eu ia, com a esperança de encontrá-la novamente.

      Em uma tarde, cansada da caminhada, resolvi sentar-me no banco de cimento. Cuidadosamente, fui até ele, como se fosse algo até sagrado. Sentei-me. Olhei ao redor e, para minha surpresa, vi várias flores de diversos tipos no entorno daquele banco de cimento cinza. Rosas, margaridas, cravos. Eram tantas, umas diferentes das outras, tanto em cor quanto em tamanho, forma. Elas encantavam aquele local tão singelo. Tornaram-no delicado, belo.
     Supus que a cada dia no banco, a senhora jogava uma pequena semente. E, aos poucos, as plantas foram nascendo, devagar, sem que ninguém percebesse. Assim, após mais de meses, ali estavam elas, grandes e belas. Pude entender que mesmo aquela solidão, trouxe flores.

            Infelizmente, nunca mais vi a mesma senhora que, por tanto tempo, e ainda mais depois de ver as flores, admirei. Contudo, para não interromper com seus planos, cada dia de caminhada eu levava uma semente de uma fruta que comia durante a manhã. E, assim, plantava-as delicadamente nos vãos da praça. Além de plantar, quando muito grandes, eu mesma ia lá e as podava, para deixar o ambiente mais agradável possível. E, aos poucos, a praça foi tornando-se mais famosa e conhecida na cidade, por tamanha beleza das árvores e flores que ali brotavam. Muitas pessoas passaram a visitar aquele local que, antes praticamente só meu e da senhora, abria-se agora para o mundo.

Le bleu de la mer

No início da manhã o dia estava ensolarado. O sol exprimia seus raios alto no céu extremamente azulado, limpo e sem nuvens. Aproveitando o tempo bom, um menino que morava em uma pequena casa, próxima à uma praia, resolveu sair para brincar na areia, levando consigo um barquinho de brinquedo. Sua mãe permaneceu na casa e pediu que ele retornasse para almoçar.          Após concordar com sua mãe, o menino saiu alegremente pelas rochas que circundavam o local. Desceu um pequeno declive com muita habilidade, pois ele conhecia muito bem aquele caminho. Sabia exatamente a localização das pedras com musgo em que poderia escorregar e as evitou durante a descida.
            Finalmente, seus pequeninos pés encontraram a areia branca da praia. Os grãos de coloração bege entraram entre seus dedos, o vento balançou seus cachos curtos para trás e ele lançou à vista do mar um largo sorriso.
            Infelizmente, aquela praia era um pouco diferente, pois não havia uma área com água rasa no mar. Se você saísse da areia quente e adentrasse um pouco no mar já veria um ambiente completamente fundo. Era uma praia de mar aberto. O menino sabia muito bem disso, e, já que era proibido de entrar nas águas salgadas para brincar, procurava divertir-se mesmo na areia e nas proximidades do mar.
            Bem perto da imensidão azul-esverdeada o menino estendeu sobre a areia a própria camiseta que usava e sentou em cima dela, a fim de amenizar a superfície quente. Enfim, estava perfeitamente posicionado para iniciar suas aventuras.
             Imaginou que aquela imensidão de areia era, na verdade, o mar. Seu pequeno barco com seus dois marujos enfrentavam uma tempestade e abaixavam o máximo de velas possível para diminuir o efeito do vento que balançava o barco deles, quase os afundando. O menino movimentava o barco excessivamente de um lado para o outro na areia, imitava os sons de raios, trovões, ventanias imensas, o barulho das velas sendo abaixadas, do timão girando incessantemente e do desespero de seus marujos, que gritavam contra a maldição daquela fúria dos mares e do céu. Poseidon deveria estar muito irritado naquela noite juntamente de Zeus.
            Para forjar a queda do barco o menino lançou uma camada de areia recolhida por suas duas pequenas mãos sobre seu brinquedo. No mesmo instante, uma enorme rajada de vento transpassou por seu corpo, bagunçou seus cabelos, deixou-o instantaneamente com a visão prejudicada, por conta da areia que entrou em seus olhos, e levou para longe seu barquinho.
            O garoto esfregou os olhos incomodados com os fragmentos da areia. Quando conseguiu voltar a enxergar sem dificuldade, olhou para cima e percebeu que o tempo estava mudando. Nuvens tinham aparecido e eram até muitas comparadas com o início da manhã. O céu não mais se mostrava azulado, mas sim cinzento, pelo menos nos arredores da praia, e uma ventania iniciou-se.
            Ele havia estado tão entretido com a história de seus dois marujos que não percebera as transformações acontecendo ao seu redor. Apesar de parecer poucos minutos, o menino já tinha brincado por uma hora na praia. Tempo suficiente para o vento trazer algumas nuvens de chuva.
            “ Para onde foi o barco? ”, perguntou-se, quando reparou que o brinquedo tinha desaparecido de seu alcance.
            Percorreu seu olhar na areia ao redor de seu corpo. Nada encontrou. Cavou um buraco não muito fundo à sua frente onde o barco estava na última vez que foi visto. Sem sucesso. A ventania aumentava e, para atrapalhá-lo, seus fios de cabelo enrolados caiam em seu rosto. Deveria voltar, alertou sua consciência visto o mal tempo que se aproximava dali.
            As nuvens escuras não paravam de se aproximarem. Lembrou-se dos conselhos antigos de sua mãe para não ficar sozinho em temporais. Porém, ele não poderia retornar sem seu companheiro de aventuras: o barquinho. Ganhara-o quando tinha apenas 5 anos e desde então ele era seu brinquedo favorito. Não queria despedir-se dele naquele dia. Mesmo após uma longa jornada juntos, eles ainda tinham muito a percorrer nos grãos de areia daquela praia.
            Depois de revistar a areia toda, quase desistindo da árdua tarefa de encontrar seu amigo desaparecido devido ao vento, seus olhos arredondados pousaram em um objeto colorido no mar. Era ele! O barquinho! Seu brinquedo flutuava sobre as águas salgadas quanto tanto imaginara!
            O menino sentiu-se tomado por alegria por ver que seu barco tinha capacidade de enfrentar as ondulações do mar e ao mesmo tempo tristeza, pois sentia que havia perdido seu brinquedo para sempre, uma vez que o garoto era proibido de entrar naquelas águas.
            Mesmo sabendo do perigo das águas, ele decidiu que não queria perder de jeito nenhum seu barquinho. Aproximou-se lentamente da beira do mar. Algumas pequenas ondas formavam-se na beirada e agora aumentavam seu tamanho por conta da ventania.
            De repente, começou a chover. Muitas gotas caíram do céu. O menino correu rapidamente de volta ao local anterior, pegou a camisa que colocara na areia quente para sentar-se, sacudiu-a e amarrou-a como um chapéu em sua cabeça para tentar proteger-se um pouquinho da chuva.
            Apesar do crescente mal tempo, ele tinha um objetivo traçado: recuperar seu barco. Então, o menino correu e voltou a aproximar-se do mar.
            Poucos passos antes de seus dedos tocarem a água fria, o garoto curvou-se e cerrou um pouco os olhos, tentando focar em algo distante, mas nem tanto, que lhe chamou atenção.
            Não muito longe dali ele viu algo inacreditável até para sua imaginação fértil. Um barco ― esse de verdade!  ― localizava-se a uma distância considerável, mas não tão grande, da praia. O barco era pintado de marrom e tinha apenas uma única vela branca que estava fechada e amarrada a um tronco de madeira. Estranhamente, o barco não tinha um timão e, mesmo um tanto longe, o menino pode ver que ele tinha buracos em seu casco do fundo. O barco estava, lentamente, afundando.
            Mas, além disso tudo, outra figura chamou atenção especial do menino. Dentro do barco havia uma mulher. Essa mulher vestia-se inteiramente da cor azul do oceano. E, acima de sua cabeça, um guarda-chuva inteiramente azul também, com alguns furos, estava aberto. Ela segurava o cano dele com as duas mãos. Sentada no chão do barco, o menino apenas via o tronco da mulher. Não era possível também ver seu rosto por conta da posição lateral que ela se encontrava.
             “Engraçado...  Por que ela usa um guarda-chuva, se suas pernas devem estar todas molhadas? Esse barco não está afundando? ”, pensou o menino, observando a estranha cena.
            A chuva apenas aumentava. O barco da mulher continuava a deriva à sua frente. O barquinho de brinquedo desapareceu do alcance de visão do menino na imensidão azul.
            Desanimado com sua busca, ele decidiu pedir ajuda a mulher. “ Ei! ”, gritou ele com todas as suas forças para tentar ser ouvido entre o barulho da ventania, dos trovões e das ondulações do mar: “ Você viu um pequeno barquinho por aí? ”.
            A mulher nada disse. Não moveu sua cabeça. O barco marrom movimentava-se com a ondulação do mar. O guarda-chuva continuava aberto e mesmo segurando com tanto cuidado tal objeto o corpo da mulher era encharcado pela chuva como o do menino. Contudo, ela não parecia notar isso. Não aparentava notar nada ao seu redor. Nem que estava molhada, nem o seu barco afundando, nem o mar, nem o garoto sozinho gritando na praia, no qual, em sua visão, caso fosse visto, seria apenas um pontinho preto.
            O semblante do menino começava a mudar. Apesar de antes determinado, seu rosto passou a demonstrar cada vez mais sua decepção em não conseguir ter de volta o brinquedo. Os trovões pareciam outros e passaram a amedrontá-lo. A chuva aumentava seu volume. O garoto já estava totalmente molhado. A areia tornava-se escura a seus pés e não mais entrava em seus dedos. O mar, antes calmo, passava a ter algumas ondas.
            O barco da mulher oscilava cada minuto mais na água. Além disso, o menino tinha a sensação de que o barco já estava metade submerso. Logo o corpo daquela mulher iria ser tomado pelas águas.
            Após perceber isso o garoto preocupou-se consigo mesmo e com a mulher, vendo que a chuva não melhorava e apenas se agravava. “ Ei! Moça! Saia já daí! Abandone o barco! Ele está afundando! ”, gritou novamente o menino, dessa vez para tentar ajudar a mulher visto às circunstâncias.
            Entretanto, como da primeira vez, não obteve resposta.
            Intrigado com a situação estranha que observava, continuou ali, curioso com as atitudes daquela mulher misteriosa. O barco prosseguiu com seu encontro ao mar. Foi afundando, afundando, afundando...  Quando somente restava o guarda-chuva e a cabeça da mulher sem ter sido engolidos pelas águas, uma nova ventania passou pelo menino. Dessa vez, as ondas do mar invadiram a areia próxima a ele e tragou-o para dentro de si. Aquele corpo pequeno misturou-se subitamente com a água escura. Ele rodou dentro das ondas. Fechou a respiração e apenas aguardou.
            Quando deu conta de si, estava deitado na areia da praia, próximo às águas. O sol raiava novamente no céu e apenas algumas nuvens ainda estavam presentes. O mar estava calmo como antes. Entre o braço direito e seu corpo viu o barquinho de brinquedo. Ao ter de novo seu objeto precioso, sorriu.
            Sentou-se. Segurou o brinquedo com as duas mãos, colocou-o frente a si, no rumo de seus olhos e também do mar. Maravilhado, ele observou aquele seu companheiro como se tivesse acabado de ganhá-lo. Contudo, ao ver o mar no horizonte, lembrou-se imediatamente da mulher do guarda-chuva. Abaixou os braços com o brinquedo e olhou somente o mar. Não havia nenhum resquício da mulher e nem do barco marrom. Todavia, ele sabia que aquela cena não tinha sido apenas parte de sua imaginação.
            Assim, segurando seu brinquedo com uma das mãos, caminhou e aproximou-se novamente daquelas águas tão belas e misteriosas, simultaneamente. Quando colocou os dedos do pé no mar, um guarda-chuva azul, com furos, veio em sua direção.
            O menino esperou o objeto chegar próximo a ele. Pensou em guardá-lo consigo, como lembrança do que vira. Contudo, pouco antes de sua mão esquerda atingir o acessório, ele hesitou. Imaginou que, provavelmente, aquilo ao mar pertencia e não tinha direito de tomá-lo para si.
            Olhou para o horizonte mais uma vez. Lá no fundo, um belo arco-íris havia se formado. Após admirar a paisagem, resolveu retornar. Afinal, como bem indicava o sol no céu, já era hora do almoço e sua mãe o aguardava. O garoto virou-se para o mar que lhe proporcionara tantas aventuras em poucas horas e, sem dizer adeus, ou guardar qualquer tristeza da despedida, partiu. Escalou delicadamente as rochas em direção à sua casa. Teria muito o que contar a sua mãe. Infelizmente, ela não compreenderia a magnificência daquele dia e nem mesmo olharia o mar com o sentido que o menino agora atribuía a ele: misterioso, mas incrivelmente belo e divertido.        

sábado, 19 de novembro de 2016

O mar e o não reflexo das estrelas

A ventania fez com que o mar se tornasse revolto. No mar aberto, as ondulações apareciam aos montes.  O céu não mais refletia a beleza cristalina das águas. Nem o mar era o reflexo das estrelas. Na realidade, tudo era plena escuridão.
         Meio a tantas sombras, um corpo feminino boiava de um lado para o outro, levado pelas ondulações da imensidão azulada. Seus olhos miravam as nuvens acima de si, escuras. O céu estava fechado, não se via a lua, apesar de já ser noite. O que ela fazia ali? Não sabia. Apenas deixou, que, por um único dia e momento, o mar carregasse seu corpo. A água salgada passava por seus cabelos, por sua pele. E, sem que mexesse qualquer músculo, ela apenas se permitia ser. Deixava simplesmente que aquele lugar a levasse, conduzisse-a à algum lugar ou a lugar qualquer. Estava cansada. Exausta de escolher. Queria apenas que as águas a levassem. Para bem longe das decisões e para perto das pessoas as quais mais amava. Mas, na verdade, as ondulações levá-la-iam para a direção que bem quisessem. Afinal, o controle não estava mais com ela. Estava fora. Seus braços estavam bem abertos na horizontal. Suas pernas permaneciam coladas e a água carregava seu corpo. Ali, perdido, sozinho... sem ninguém além dele mesmo. E, mesmo em toda aquela tempestade, as preocupações dissolviam, misturavam-se ao sal, as algas, a areia no fundo do oceano.

         Fechou os olhos. Em sua mente as imagens das pessoas que mais amava em sua família vieram. Lembrou-se do carinho deles, dos abraços, dos beijos. Do amor. Daquele amor que também parecia dissolver-se e contrastava-se com a água fria da noite. Aquela realidade tão comum antes, agora visualizava-se tão distante, como sendo estranha a si. Havia uma felicidade que ela não podia descrever naquelas lembranças. Uma felicidade a qual ficara escondida durante muito tempo enquanto vivia tudo aquilo. Agora... ela despertava para tudo que vivera. 

Em uma tarde qualquer

Sentei-me à mesa da cafeteria. A garçonete veio ao meu encontro e disse para eu ficar à vontade. Agradeci, e logo que abri o cardápio já tinha em mente qual seria meu pedido. “Por favor, um frozen de cappuccino e um pão de queijo”, disse a ela. A mulher anotou o pedido e foi prepará-lo. Rapidamente ouvi o barulho do liquidificador batendo o frozen, o cheiro de café que exalava da máquina, devido ao pedido de outros clientes e a luminosidade amarela a qual deixava o ambiente mais confortável, junto as suas poltronas esverdeadas.
             Como não tinha nenhuma companhia para distrair meus pensamentos, além da breve análise daquele local confortável, observei o casal ao lado. Um homem e uma mulher, ambos de meia idade, repartiam a mesa e tomavam um café simples. Uma cena de não tanta excentricidade, porém, chamou-me atenção o fato da mulher estar com o rosto um pouco vermelho e passar repetidas vezes a mão nos olhos. Estaria ela chorando?   O homem dizia algo que parecia afastá-la dele, não fisicamente, mas emocionalmente. Seus gestos com as mãos e a forma decepcionada com que ela mirava- o transmitiam-me essa impressão.
            Será que eram namorados e passavam por uma crise de relacionamento? Ou, ele estava definitivamente terminado o namoro? Ou, será que ambos não tinham nenhuma relação íntima, sendo apenas sócios de uma empresa perto da falência? Tais perguntas cresceram em minha mente.
            Café expresso. Era um encontro simples. Um daqueles que se faz no meio da tarde quando as pessoas na mesa já comeram em outro lugar anteriormente, mas a dependência de cafeína ou apenas a necessidade de ter um encontro social simples fazia com que as cafeterias sempre estivessem cheias. Mas aquela conversa não se assemelhava a simplicidade. Complexidade. Algo acontecia na mente daquela mulher avermelhada que o mirava com tristes olhos. E de tão tristes e tão profundos eu me perdi neles.
            Naquele momento, senti como, apesar de sozinha, eu estava em pleno equilíbrio, enquanto a outra mulher, essa acompanhada, parecia ter sua pele queimada, seus órgãos estilhaçados, e seus músculos desintegrados enquanto ouvia o rapaz a sua frente.
            Após mais algum tempo observando percebi que minha segunda hipótese era certeira. Ela tinha vontade de ir embora, sabia disso. Ela queria que ele parasse de falar tantas besteiras. Desejava apenas estar envolta em seus braços, com nenhuma palavra propagando-se no ar. Ansiava os ouvidos limpos e claros e o coração cheio. Preenchido do amor. Mas daquele amor puro. Amor infantil, adolescente, platônico. Aquele amor que quase nunca se encontra nas novelas televisivas, nos filmes, nos romances, pois parece muito bobo à vista de quem não o sente. Todavia, ele existe e é um dos mais maravilhosos amores. Existe nos becos, às escuras, tímido como um gato de rua ao aproximar-se de alguém desconhecido. Quieto, alastra-se nos corações mais puros e singelos. E, na maioria das vezes, não sai do peito dos amantes. Fica ali, guardado, escondido. Uma joia preciosíssima em tempos tão escassos de amor. E era aquele tipo de amor que se resguardava em tais olhos tristes e profundos.
            Eu sabia, apenas de olhar para aquela mulher, que era esse tipo de sentimento o qual passava-se dentro de si. Eu sabia, porque já o havia sentido. Já guardara muitos amores no peito. Os quais carregava apenas comigo. Não eram de mais ninguém, só meus. Íntimos, escondidos. Mas, sentidos.
            E como doí a separação dos amantes. O coração bate mais forte, os olhos forram-se de lágrimas e a boca fica seca, você quer transmitir todo aquele amor, mas é um amor que não se transmite. As palavras não são suficientemente boas para fazê-lo. Por isso, o apelidei de amor mudo.
            Acredito que poucas pessoas já sentiram o amor mudo. E aquela mulher era uma minoria. O homem não a amava. Eu via em seus gestos de mãos e da falta de açúcar que colocara no café. O açúcar deixara de preenchê-lo há muito e agora a amargura do café espalhava-se para cima daquela que o amava.
             Amor mudo. Aquele amor raro. Eu o encontrei naquele dia, inesperadamente, num rosto qualquer de uma cafeteria. Quanto tempo já havia se passado desde que eu sofri daquele amor, por um homem que não o sentia? Já nem me lembrava mais. Mas, com certeza, meu olhar fora como o daquela mulher, um olhar triste e profundo. O da mais pura descrença no outro, e em mim, que falhamos no amor, e diante disso, podíamos falhar em qualquer outra coisa que não teria diferença. O amor era a diferença. Amar exige capacidade de lidar com a diferença do outro.

            “Aqui está seu frozen e pão de queijo. ”, disse a garçonete, deixando sobre a mesa os pedidos. “Obrigada”, respondi, como se quisesse encontrar dentro de mim o amor, onde somente existia um cappuccino gelado, um pão de queijo frio e uma tarde qualquer em uma cafeteria. 

sábado, 17 de setembro de 2016

O passageiro

O senhor olhava para o nada. Na realidade, era esse mesmo nada que o consumia. Mas, o que é o nada? O nada é o mesmo. A mesma cena todos os dias, os mesmos anúncios, a mesma demora. Afinal, era somente isso que ele possuía. A mesmice de seu cotidiano vazio.
      Seus trapos velhos continuavam a empoeirar. Seu corpo continuava a exprimir odores indesejados. Os fios de seu cabelo continuavam desalinhados. E seu olhar continuava vazio, triste. Estava ele, um senhor já de seus quarenta anos, sentado em um dos bancos da rodoviária. Mas, infelizmente, ele não esperava nenhum ônibus. Afinal, não tinha para onde ir, nem para onde retornar. Não pertencia a lugar algum, nem ali, no lugar em que geralmente se sentava, fazia parte. Sua figura destoava dos demais. Era apenas mais um morador de rua, um homem sem rumo, qual vagava por entre almas ainda completas.
            Logo quando começara a sua vida como mendigo achava interessante notar o olhar das pessoas, a seu ver, comuns. Eram olhos com brilho e vivacidade, entretanto, sentia que esse brilho diminuía razoavelmente quando os olhares pairavam sobre sua pessoa maltrapilha. Isso o intrigava. Contudo, o principal motivo de observar os olhares era a esperança de retornar a ter aquele brilho. Voltar a pertencer a alguém. Porém, seu sonho singelo nunca fora realizado. Ele saiu de casa e nunca mais viu sua mulher e filhos. Ambos ele abandonou devido a ter perdido o trabalho, e, envergonhado pela demissão, resolveu sair para procurar emprego incansavelmente. Como não encontrou nenhum serviço retornou a sua casa depois de certo período. Mas, lá não havia restado mais ninguém. O novo morador dissera que os donos antigos venderam a residência e ele nada sabia sobre para onde foram. Sem um teto para se abrigar, caíra nas ruas da cidade, sozinho.
            E desde então estava ele ali, sentado naquele banco desconfortável. Depois de tantos anos, imaginava que sua mulher já o tinha considerado como falecido há muito.
            Enfim, naquela tarde chuvosa, estava ele, no mesmo canto, com um saco quase vazio de biscoitos de polvilho que ganhara de uma senhora acomodado em sua coxa. Ouvia, pela milésima vez naquele dia, o anúncio da prefeitura, pedindo para que os moradores de rua se encaminhassem para a assistência social. Ele achava aquilo uma hipocrisia. Se o governo quisesse tanto ajudar seus cidadãos desde o início, possivelmente não estaria sentado naquela cadeira há tanto tempo. Talvez, até tivesse se casado novamente. Quem sabe?
            Naquela tarde, sua cabeça doía muito e ele parecia irritar-se até mesmo com o barulho da chuva. Porém, demonstrava em seu exterior um semblante muito calmo. Afinal, não deveria gastar o pouco de sua energia com seus sentimentos. E, foi naquela mesma tarde, aparentemente comum, que um acontecimento o encantou e encheu seus olhos do brilho esquecido.
            - Olá. – disse a voz doce de uma garotinha, qual sentou-se à frente dele.
            - Está falando comigo?
            - Sim, com quem mais estaria?
            O homem olhou ao redor. Não havia ninguém, além dos dois, sentados na rodoviária. Estranhou a menina qual estava à sua frente. Primeiro, porque ela era pequena, suas pernas mal alcançam ao chão, balançando os pés de um lado para o outro. Segundo, seus olhos eram inusitados: não possuíam o brilho das outras pessoas que sempre passavam por ele, porém também não eram semelhantes ao seu. Deixando-lhe interessado em compreender aquele olhar. E, o principal: ela estava sozinha. “Ela está perdida? ”, perguntou-se.
            - O que quer? – indagou a garota.
            - O senhor está bem?
            - Sim, porque não estaria?
            - Parece doente...
            - Bem, estou com dor de cabeça.
            A menina negou.
            - Não digo doente nesse sentido. No outro sentido.
            - Outro... sentido?
            - Sim. Seu coração parece ferido.
           Coração? Ele não tinha problema no coração de acordo com seus conhecimentos. Então, depois de algum esforço, concluiu que a palavra se referia a outro sentido. Refletindo a respeito, indagou-se: que argumento ela tinha para falar sobre suas intimas emoções? Não conseguia encontrar sentido àquela conversa, mesmo assim, movido pela curiosidade, resolveu dar sequência ao diálogo.
            - Que tipo de dor?
            - Hum... – hesitou a menina – Você me parece sozinho. E sente muita saudade de alguém.
            Imediatamente o homem lembrou de seus dois filhos. Lembrou dos dois lhe abraçando após o fim do exaustivo expediente de serviço. Transportou-se para aquele tempo em que era abençoado por poder sorrir e sentiu o calor dos pequenos corpos inundá-lo, em contrapartida ao frio que realmente sentia pelo vento derivado da chuva.
            - Acertei... Você está chorando.
            Fazia muito tempo que não sentia lágrimas escorrerem de tal forma por seu rosto. Elas derramaram-se rapidamente e enchiam-lhe de sentimentos que pareciam ter sidos perdidos em um beco qualquer.
            - O que quer de mim, menina? – disse o homem o mais ríspido que conseguira, após ter limpado as lágrimas com a manga da blusa suja.
            - Não sei, o que você quer de si mesmo?
            - Está me deixando confuso.
            - Você está confuso. Vamos brincar? Finja que eu sou a vida. Pense em algo para dizer a ela.
            - A vida?
            - Sim, sim, a vida. Sabe o que essa palavra significa, não é?
            - Claro...  – Ele sabia o que significava, mas, o conceito era abstrato demais para que talvez pudesse estabelecer uma frase tão concreta em palavras. – Não sei o que dizer.
            - Qualquer coisa. Brinque comigo, tio! – insistiu ela.
            - Certo. Vida, você foi uma grande decepção.
            - Essa palavra é muito feia. Quero algo mais alegre.
            - Não tenho algo alegre a dizer sobre a vida.
            - Nada mesmo, tio?
            - Nada. Virei morador de rua aos vinte e cinco anos e estou nessa vida até hoje. Uma menina como você nunca irá entender como é viver assim.
            - Talvez não mesmo. Mas, tio, tenho certeza que mesmo nossas vidas tendo sido diferentes o tio ainda pode ouvir o som das gotas de água caindo do céu, não pode?
            - Sim, posso. E daí?
            A menina abriu um largo sorriso de satisfação antes de continuar:
            - Então é o suficiente para você ter algo belo e alegre a dizer sobre a vida.
            - Chuva?
            - Isso mesmo. Você consegue ver a beleza na chuva, tio?
            Pela primeira vez ele parou, moveu a cabeça para o lado e concentrou-se em ouvir o som da chuva caindo lá fora nas plataformas dos ônibus. Depois de observar muito atento, fechou os olhos e apenas ouviu seu som. O som que chegava aos seus ouvidos estava mesclado com a voz dos anúncios de embarque e desembarque, mas ele apurou a audição para fixar-se no barulho da natureza. Passageiros lá fora tinham dificuldades em carregar suas malas e protegerem-se da chuva, pois a maioria dos guarda-chuvas deformavam-se para o lado oposto do ideal com o vento e mais atrapalhavam do que protegiam.
             Entretanto, a concentração do morador de rua não estava ali, naquelas cenas cómicas e ao mesmo tempo trágicas. Estava no barulho. Ele aguçou os ouvidos enquanto olhava as gotas de águas despencando do céu acinzentado. E, surpreso, pela primeira vez, viu o quão belo era aquele som delicado, no qual nunca havia prestado atenção antes.
            Aquela cena e o som que penetrava em seu íntimo pareceu tornar-se cada vez mais distante. Sentiu-se como se seu corpo não pertencesse mais aquela cadeira. Não sentia mais a dureza do material do assento no qual sentava, nem o cheiro dos salgados da cantina lhe chegavam a narina. De súbito, sentiu-se tonto. Algo estava errado. Sua visão ficou turva. Observou a frente. A menina desaparecera. Como era possível? A menos de um minuto ela estava o encarando.
            A dor de cabeça aumentou. Seus ouvidos pareciam estar tampados com algodão, pois abafavam os sons da rodoviária, que se tornaram cada vez mais distantes de si. Percebeu que uma mulher – não conseguia distinguir se jovem ou idosa – aproximou-se dele e o chamou. Ouvia distante o tratamento por senhor, entretanto não compreendia sua fala. Os biscoitos caíram no chão e se esparramaram pelo chão. Contudo, não eram apenas os biscoitos, mas também o homem já estava no piso gélido. A mulher parecia continuar a chamá-lo. Sem nada compreender, ele tentou manter-se calmo. Porém, sua visão continuava ruim.
             “ Eu irei morrer”, pensou ele. “ Mas, onde está a menina? Eu preciso ajudá-la, ela me parece estar perdida”. Ele buscou manter seus sentidos o mais claro possível e ergueu a cabeça para olhar ao redor. Logo, observou: uma televisão, no pilar adiante, passava um filme. Uma pequena garota, semelhante àquela que conhecera, divertia-se na chuva, molhando seus cabelos e corpo. “ O que faz ela faz lá?”.
            - Senhor! Consegue me ouvir? Estou chamando a ambulância! Aguente firme! – escutou, mas já era tarde. A mulher, funcionária de uma das lanchonetes, estava agitada, tentando ajuda-lo de alguma forma, apesar de ser muito tarde.

            Sua cabeça tombou para o lado. O corpo esmagou os biscoitos do chão. A cena do filme terminou. Em sua mente, diante de seus últimos pensamentos, ele apenas se lembrou do barulho da chuva lá fora, dos olhos da menina, e da vida, uma beleza passada despercebida diante de seus olhos, esses incapazes de captar as coisas mais simples. Infelizmente, somente teve consciência disso perante o sopro que agora lhe era tirado para sempre. Toda essa beleza discreta ele nunca pudera enxergar, porque estava cego. Sempre estivera cego para o mais simples e o mais importante. 

O primeiro e último botão

Todos os dias a mulher regava a última aquisição de seu jardim com um ar intimidador. Durante o percurso de regar as demais plantas o sorriso estampava-se no rosto de Ana, encantada com os coloridos cheiros que enfeitavam seu quintal. Contudo, ao deparar-se com sua mais nova aquisição, uma pequena planta, de galhos finos e aparentemente fracos, seu rosto fechava-se em terrível decepção. Afinal, mais de um ano havia se passado e nenhuma flor desabrochara naqueles galhos verdes.
            Apesar de todo o empenho em regá-la diariamente, adubar, perseguir as formigas que vez ou outra costumavam querer roubar as folhinhas da planta, ela continuava quase idêntica de quando a comprara – apenas um pouco maior em tamanho – mas com as mesma folhas e galhos esticados. Não que esses galhos fossem pouco majestosos, eram bem esverdeados e lotados de pequenas folhinhas, porém, sem outra cor além do verde.
            Após tanto tempo sem ver brotar nela um único botão, a mulher passou a regar aquela planta com certo desprezo das demais. “É melhor que eu veja florescer algumas pétalas de seus galhos, caso contrário, já sabe! ”, dizia ela, todas as vezes que a regava, a fim de intimidar a pequena planta. 
            E a planta, a partir dessas afirmações, afundava em profunda tristeza. Ela torcia todos os dias para que seu corpo florisse, mesmo sabendo que não era a hora adequada. Entretanto, apesar de tamanho desejo, dias se passavam e nenhum botão dava sinal de vida. Cansada de tanto ouvir as reclamações de sua dona, a pequena planta já se considerava inútil, pois as flores lhe faltavam, e, portanto, sua beleza e função naquele espaço estavam comprometidas.
            Afinal, ninguém queria ver os belos galhos verdes, por mais belos que pudessem parecer. Todos queriam magníficas flores cheirosas e coloridas, para encantar os possíveis visitantes daquele jardim. Porém, isso a planta não podia oferecer. Não naquele momento.
            Ela precisava de mais tempo. Não sabia de quanto mais, talvez uma semana, um mês, um ano.... Como saberia? Era jovem e tinha dificuldade de compreender tudo que acontecia com seu corpo.
            Cansada de ouvir a mesma ameaça de sua dona, e rodeada dos próprios pensamentos negativos que reformulava sobre si, a flor foi ficando cada vez menos verde. Ela parou de crescer, seus galhos começavam a ficar secos e caídos, e suas folhas verdes desprendiam-se sozinhas e caíam no chão.
            Diante disso, a mulher percebeu que a planta estava ficando diferente e pensou ser falta de água. Assim, passou a regá-la mais vezes ao dia, porém, de nada adiantou.
            Ao fim de um mês desde que suas folhas passaram a cair, os pensamentos continuavam. “Cresçam botões...”, e perante a frustração, “Ah, eu sou inútil, não consigo dar a ela nem mesmo pequenas flores. ”.
            Nesse ínterim, não existiam mais os belos galhos verdes, de folhinhas saudáveis. Agora, galhos secos, sem folhas, quase ausentes de vida era o cenário que prevalecia. Apenas um dos galhos, esse bem escondido e esquecido, continuava verde.
            Nesse ponto, a dona do jardim, acreditando que a planta já havia morrido, preparou-se para dar fim aquela paisagem horrível qual atrapalhava sua decoração. Colocou duas luvas de plástico em suas mãos e sem nenhuma dificuldade arrancou a raiz da planta do vaso. Levou-a até o latão de lixo do quintal e a despejou ali. “Desperdicei dinheiro com essa planta. ”, pensou, após dar as costas para admirar as outras plantas de seu jardim, essas todas floridas.

            Enquanto isso, dentro da escuridão do latão de lixo, naquele último galho verde, o menor e mais frágil, havia um botão, e dele a flor morreria, antes mesmo de nascer. 

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Insônia

Por volta das duas horas da madrugada seus olhos estavam estalados como se pertencessem não a um ser humano, mas sim a um gato ― talvez possamos imaginar, caro leitor, a imagem de um gato negro, de íris amarelada, já que assim como o gato preto o corpo do idoso se misturava com a escuridão da noite, enquanto lhe ressaltava as pálpebras abertas.
             Deitado ainda sobre o leito da cama o senhor abriu os olhos e não conseguiu mais fechá-los com facilidade. Para ele, essa sensação não era mais tanta novidade, porém ainda o incomodava.  A insônia atingia-o há quase duas semanas e parecia que uma batalha fora iniciada desde então.
            Mesmo com os olhos abertos, os ouvidos, na madrugada, tornavam-se tão apurados como os de um animal. Ele escutava perfeitamente singelos barulhos executados durante o dia, mas perceptíveis apenas pela noite silenciosa. O relógio da sala, a dilatação dos móveis de madeira e a torneira que pingava no banheiro soavam como uma canção horrível, de notas desconexas, que elevavam a irritação em sua mente já atordoada.
            Suspirou. Buscou relaxar e tentar adormecer novamente. Entretanto, sua técnica falhou mesmo após três tentativas. Devido a ansiedade ― essa gerada justamente pela falta do sono ― seu corpo rolava na cama, a fim de encontrar uma posição confortável suficiente para presenteá-lo com um adormecer tranquilo. Ao seu lado, sua esposa repousava em sono profundo e nem mesmo reparava na agitação de seu marido. Ele, percebendo que poderia incomodá-la se continuasse insistindo naquela situação, decidiu deixar a cama até que a vontade de dormir retornasse.
            Vitor foi lentamente até a sala. Acendeu as luzes brancas que lhe ofuscaram a visão a princípio. Nesse instante, não mais poderia ser comparado ao gato preto do início, mas sim a um senhor bem desperto, ainda que letárgico. Sem saber muito bem como reagir a insônia, que lhe afetava os ânimos, sentou-se no sofá e tentou respirar conscientemente e de forma calma. Nessas suas crises, além da ausência de sono, seu coração parecia bater mais rápido, e um calor subia-lhe pelo corpo, apesar do friozinho da madrugada. Em tais momentos ele acreditava que a respiração poderia ajudá-lo a sentir-se melhor e, de fato, talvez essa fosse a única técnica que verdadeiramente funcionava.
            Contudo, com a respiração adequada ele conseguia apenas resolver um dos problemas enquanto o outro se intensificava. Até aquele momento a causa de suas insônias era uma incógnita. Especialistas diziam ser a idade, todavia, deveria existir um motivo maior para isso. Ao menos algo ele já sabia: tinha medo do escuro, da noite em sua completude. Porém, esse medo foi gerado justamente pela falta de sono e não fora a causa real do problema. A questão é que após uma noite mal dormida isso crescia e estendia-se para as demais noites. Passava todo o dia cogitando se ele conseguiria dormir ou não durante a noite e esses pensamentos invadiram-no tanto, até que, por fim, ele criara repulsa pelo anoitecer. Agitava-se mais ao ver o sol se pondo no horizonte. E, então, depois de adormecer, acordava somente após de uma hora de sono como se a manhã tivesse chegado.
            Um problema parecia levar a outro e o círculo vicioso tornava-se cada vez mais indesejado. Nos últimos dias, antes desse que narro a vocês leitores, Vitor tentara todas as alternativas supostamente indicadas para proporcionar uma longa noite de sono. Experimentou tomar suco de maracujá durante a janta, beber diversos tipos de chá antes de deitar, especialmente o de camomila, não fazer exercícios físicos durante a noite e até mesmo esqueceu-se dos cochilos durante a tarde. Porém, nenhuma das tentativas mostraram-se realmente eficientes.
            Pensando nisso, ele sentia-se determinado a, nessa noite qual detalho aqui, descobrir a causa real de seu sofrimento. Incentivado, levantou do sofá após alguns minutos, pegou um pequeno aparelho de música e o ligou. Após o play, a música que tocava era a “Sonata ao luar” de Beethoven. Sentou-se novamente e buscou manter os olhos fechados. Em sua mente, um monologo se iniciava.
            “A que temo? ”, perguntou-se. “A noite”, respondeu. “ Temo algo mais? ”, insistiu. “Não. ”, afirmou a si mesmo. “Se não tenho medo, devo ter alguma preocupação capaz de gerar toda essa ansiedade. Mas, qual preocupação? Meus filhos estão casados e crescidos. Minha esposa não tem problemas de saúde. Estou recebendo minha aposentadoria. Qual preocupação devo ter? ”, cogitou. O raciocínio esgotava suas possibilidades. Contudo, certamente existia algo que o preocupava. E esse algo não estava na superfície de suas emoções. Estava ali! Escondido em algum lugar de seu peito e demonstrando-se na forma de insônia!
            Conforme a música foi avançando, ele sentiu seu corpo relaxar um pouco. Os tons graves e lentos foram conduzindo seus pensamentos adiante, que tentavam alcançar seu íntimo. Suas meditações eram intercaladas com respirações longas. Então, aquela música, naquele momento, remeteu-o a uma desilusão do mundo. A vida parecia não ter sentido se vivenciada no meio da noite escutando Beethoven. Mesmo todas as suas memórias mais felizes, pareciam tristes, melancólicas, como se tudo aquilo não tivesse necessidade nenhuma de ter existido e tivessem sido apenas ações automáticas. Teria sido mesmo relevante vivê-las? Todos aqueles anos de estudo, carreira, trabalho incessante, casamento, filhos...  Será que realmente isso tinha algum valor, algum sentido? Se a vida lhe parecia desnecessária, o que diria da morte?
            Ele estava velho, e tinha consciência disso com seus 80 anos. Por uma questão cronológica, caro leitor, você deve perceber que a existência dele estava, de fato, mais próxima da morte do que da vida. Entretanto, ele estava vivo, e não tinha a experiência da morte. “Como seria ela? ”, começou ele a imaginar. Se a vida não lhe parecia tão bela ao som de Beethoven, talvez a morte lhe parecesse. Contudo, a impossibilidade de definir alguma sensação próxima da morte, deixou-o incomodado e aumentou sua ansiedade novamente.
            O indefinido apavorou-o na calmaria da sala de sua casa. Todavia, depois de alguns instantes conseguiu notar qual era a causa que tanto o fazia sofrer. “É isso! ”, afirmou para si mesmo. Não era a morte a causa de sua insônia, mas a impossibilidade de traduzi-la em emoções.
            Sabendo a causa, ele desligou o aparelhou da música. Observou novamente os ruídos da casa, desta vez, não mais irritado, mas aliviado. Se para ele era impossível pensar na morte e em sua incompreensão, bastaria não mais pensar nela, nem por breves momentos. Vitor pensaria somente na vida daquele momento em diante. Em como, até naquele momento perturbador da ausência de sono, havia vida e ele podia aproveitá-la. Ver os pequenos detalhes de cada segundo de sua existência. Os ruídos da casa, da rua, a luz que o iluminava e o sofá suave. Aquele era seu novo objetivo. Se pensar na morte, mesmo inconscientemente lhe fazia sofrer, que pensasse em viver. E na vida, encontraria todo o conforto que precisava para seguir adiante.
            Deitou-se no sofá as três da madrugada. No silêncio daquela noite, por fim, dormiu sem interrupções até a manhã seguinte.
            No dia posterior, ele com certeza acordaria mais disposto, pronto a ver o sol no azul do céu, as nuvens a espalharem-se como algodão e a felicidade de poder ouvir os pássaros cantando, sem pensar no amanhã. Vitor não pensaria mais na noite, assim, o medo se extinguiria junto com a ansiedade. Para ele, a partir daquela noite de insônia, a noite e o dia se fundiriam como um só, partes apenas de um momento.