segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Solidão compartilhada

Sempre, às cinco horas da tarde, ia caminhar na praça próxima a minha casa.  E, todos os dias, eu encontrava uma senhora, com o cabelo completamente branco, curto e o corpo já frágil, magro, que ela apoiava em uma bengala marrom. Geralmente, ela usava um short esverdeado e uma blusa branca, e pequenos sapatos fechados no pé. Nunca a vi lendo ou fazendo qualquer outra ação que não fosse apenas sentar-se. Sempre a encontrava no mesmo horário. Nós duas, na mesma hora, víamo-nos de longe na praça. Eu caminhava e ela permanecia sentada.
            Seus passos lentos acompanhados do auxílio a dirigiam até um banco isolado, debaixo da sombra de uma árvore. Ela acomodava-se no banco de cimento e ali ficava. A senhora observava as pessoas que passavam, os cães de rua, as crianças, os carros. Às vezes, ela passava a mão em sua cabeça em um sinal de pequenas angústias. Eu perguntava-me quais seriam seus pensamentos.
            Passei a observá-la cada vez mais. Não existia um único dia que ela não estivesse ali, sempre sozinha, assim como eu.
            Um dia, havia uma mãe com uma criança brincando na praça. A senhora, como de costume, ajeitou-se no banco, mas dessa vez voltou seu corpo para olhar o pequeno menino, o qual sorria e mostrava os brinquedos a mãe, que mal se esforçava para agradá-lo, mexendo somente no celular. Mesmo assim o garoto continuava a se divertir. E a senhora, também parecia divertir-se, apesar de singelamente. Pela primeira vez, em quase um mês que a via, ela deu um leve sorriso.
            Imaginei se a senhora relembrava de seus tempos de infância e por isso sorriu. Ou se somente ela havia achado engraçado a cena. Mas provavelmente, era algo mais nostálgico. Eu mesma, vendo tudo aquilo, pude ver as três partes da vida. As etapas pelas quais nós atravessamos, conduzidos pelo tempo. A infância, a vida adulta, e a velhice. E, incrivelmente, as três partes estavam reunidas naquele momento. O pequeno menino, eu, e a senhora. Nós três, pedaços diferentes, nos unimos delicadamente naquela praça, como iguais. E, ambos na solidão pessoal de cada momento. O menino, sem atenção completa da mãe, eu, caminhando solitariamente, e a senhora, sentada no banco desacompanhada. Nossas vidas se interligaram de uma forma sutil.
            Parei de caminhar. Maravilhada pela cena, apenas a observei. Talvez aquilo era a sensação de estar interligado a tudo e a todos. Ali, havia a exemplificação de como o que apelidamos de vida funciona. E o quanto o ser humano é frágil e pequeno para compreendê-la. Vivenciando aquele momento, eu tinha a consciência dele, e olhando para o menino, senti saudade do que um dia fui: criança. Olhando para a idosa, senti insegurança pelo que poderia ser.  A senhora, provavelmente tinha saudade da infância, da mocidade, e da vida adulta. Mas, diferente de mim, ou da senhora, o menino não pensava nisso. Ele apenas brincava. E provavelmente isso era o mais maravilhoso de ser criança. Sem preocupar-se com um tempo distante ou um tempo passado. Afinal, o máximo de passado que uma criança tem saudade é do dia anterior. Como gostaria de ser assim, pensei.
            Sempre que passava pela senhora, tinha vontade de sentar ao lado dela naquele banco e conversar. Ela deveria ter muito a dizer. E mesmo que não tivesse e somente falasse coisas sem sentido, para mim já estaria de bom tamanho. Eu não tinha muitas pessoas com quem conversar. Pensava que, talvez, unindo duas pessoas afundadas na solidão, pudéssemos fazer sair algo bonito. Nem que fosse uma conversa durante dez minutos, já seria suficiente, se fosse verdadeira. Porque o que mais faltava para mim eram conversas verdadeiras. Aquelas que você pode expor sua alma, pensamentos e conclusões e terá alguém para ouvi-las e entendê-las perfeitamente, ou pelo menos, tentar compreendê-las. Sentia que nesse mundo atual, isso faltava. Ninguém mais pergunta se está tudo bem com você querendo saber a verdade. As conversas são tão vazias. Tão superficiais. E, se por acaso, há a tentativa de aprofundá-las, não há tempo. Nunca há tempo! Falta tempo para pensar, conversar verdadeiramente, chorar, sorrir. Simplesmente falta tempo. De certa forma, pensei que aquela senhora poderia ter tempo. Poderia me escutar. Porém, tinha receio de me aproximar. Não sabia como realizar tal idealização. Talvez ela assustasse, ou me ignorasse, ou não quisesse conversar, quisesse apenas olhar em silêncio, como fazia todo dia.
            Dias passaram-se sem que eu me sentasse no banco. Ela via-me, eu a via, e nada dizíamos, apenas trocávamos olhares. Eu continuava a seguir meu caminho pela praça e a senhora a ficar sentada. Nós tínhamos uma solidão compartilhada. Uma sabia da solidão da outra e nisso nos refugiávamos. Não estávamos sozinhas. Mas também não estávamos juntas. Talvez apenas interligadas, como tudo no universo está. Nós éramos também parte daquele universo.
            Depois de uma semana, decidi, finalmente, tomar coragem de sentar-me no banco para conversarmos diretamente.
            Contudo, no dia de minha determinação eu não mais vi a senhora no banco. No outro, também não. Na outra semana, nada. Ela desapareceu da praça. Eu olhava para o banco sem a ver e ficava triste. O banco ali, sozinho, vazio. Perguntava-me o que teria acontecido com ela. Estaria doente? Ou algo pior até... morta? Como poderia saber? Eu queria descobrir, mas era impossível. Não sabia nem seu nome, apenas recordava de seu semblante que se misturava com a imagem dela da praça. Afinal, seu corpo já pertencia àquele lugar.
             Assim, semanas passaram e eu continuei sem vê-la. Aos poucos, minha vontade de ir à praça foi diminuindo. Apesar disso, eu ia, com a esperança de encontrá-la novamente.

      Em uma tarde, cansada da caminhada, resolvi sentar-me no banco de cimento. Cuidadosamente, fui até ele, como se fosse algo até sagrado. Sentei-me. Olhei ao redor e, para minha surpresa, vi várias flores de diversos tipos no entorno daquele banco de cimento cinza. Rosas, margaridas, cravos. Eram tantas, umas diferentes das outras, tanto em cor quanto em tamanho, forma. Elas encantavam aquele local tão singelo. Tornaram-no delicado, belo.
     Supus que a cada dia no banco, a senhora jogava uma pequena semente. E, aos poucos, as plantas foram nascendo, devagar, sem que ninguém percebesse. Assim, após mais de meses, ali estavam elas, grandes e belas. Pude entender que mesmo aquela solidão, trouxe flores.

            Infelizmente, nunca mais vi a mesma senhora que, por tanto tempo, e ainda mais depois de ver as flores, admirei. Contudo, para não interromper com seus planos, cada dia de caminhada eu levava uma semente de uma fruta que comia durante a manhã. E, assim, plantava-as delicadamente nos vãos da praça. Além de plantar, quando muito grandes, eu mesma ia lá e as podava, para deixar o ambiente mais agradável possível. E, aos poucos, a praça foi tornando-se mais famosa e conhecida na cidade, por tamanha beleza das árvores e flores que ali brotavam. Muitas pessoas passaram a visitar aquele local que, antes praticamente só meu e da senhora, abria-se agora para o mundo.

Le bleu de la mer

No início da manhã o dia estava ensolarado. O sol exprimia seus raios alto no céu extremamente azulado, limpo e sem nuvens. Aproveitando o tempo bom, um menino que morava em uma pequena casa, próxima à uma praia, resolveu sair para brincar na areia, levando consigo um barquinho de brinquedo. Sua mãe permaneceu na casa e pediu que ele retornasse para almoçar.          Após concordar com sua mãe, o menino saiu alegremente pelas rochas que circundavam o local. Desceu um pequeno declive com muita habilidade, pois ele conhecia muito bem aquele caminho. Sabia exatamente a localização das pedras com musgo em que poderia escorregar e as evitou durante a descida.
            Finalmente, seus pequeninos pés encontraram a areia branca da praia. Os grãos de coloração bege entraram entre seus dedos, o vento balançou seus cachos curtos para trás e ele lançou à vista do mar um largo sorriso.
            Infelizmente, aquela praia era um pouco diferente, pois não havia uma área com água rasa no mar. Se você saísse da areia quente e adentrasse um pouco no mar já veria um ambiente completamente fundo. Era uma praia de mar aberto. O menino sabia muito bem disso, e, já que era proibido de entrar nas águas salgadas para brincar, procurava divertir-se mesmo na areia e nas proximidades do mar.
            Bem perto da imensidão azul-esverdeada o menino estendeu sobre a areia a própria camiseta que usava e sentou em cima dela, a fim de amenizar a superfície quente. Enfim, estava perfeitamente posicionado para iniciar suas aventuras.
             Imaginou que aquela imensidão de areia era, na verdade, o mar. Seu pequeno barco com seus dois marujos enfrentavam uma tempestade e abaixavam o máximo de velas possível para diminuir o efeito do vento que balançava o barco deles, quase os afundando. O menino movimentava o barco excessivamente de um lado para o outro na areia, imitava os sons de raios, trovões, ventanias imensas, o barulho das velas sendo abaixadas, do timão girando incessantemente e do desespero de seus marujos, que gritavam contra a maldição daquela fúria dos mares e do céu. Poseidon deveria estar muito irritado naquela noite juntamente de Zeus.
            Para forjar a queda do barco o menino lançou uma camada de areia recolhida por suas duas pequenas mãos sobre seu brinquedo. No mesmo instante, uma enorme rajada de vento transpassou por seu corpo, bagunçou seus cabelos, deixou-o instantaneamente com a visão prejudicada, por conta da areia que entrou em seus olhos, e levou para longe seu barquinho.
            O garoto esfregou os olhos incomodados com os fragmentos da areia. Quando conseguiu voltar a enxergar sem dificuldade, olhou para cima e percebeu que o tempo estava mudando. Nuvens tinham aparecido e eram até muitas comparadas com o início da manhã. O céu não mais se mostrava azulado, mas sim cinzento, pelo menos nos arredores da praia, e uma ventania iniciou-se.
            Ele havia estado tão entretido com a história de seus dois marujos que não percebera as transformações acontecendo ao seu redor. Apesar de parecer poucos minutos, o menino já tinha brincado por uma hora na praia. Tempo suficiente para o vento trazer algumas nuvens de chuva.
            “ Para onde foi o barco? ”, perguntou-se, quando reparou que o brinquedo tinha desaparecido de seu alcance.
            Percorreu seu olhar na areia ao redor de seu corpo. Nada encontrou. Cavou um buraco não muito fundo à sua frente onde o barco estava na última vez que foi visto. Sem sucesso. A ventania aumentava e, para atrapalhá-lo, seus fios de cabelo enrolados caiam em seu rosto. Deveria voltar, alertou sua consciência visto o mal tempo que se aproximava dali.
            As nuvens escuras não paravam de se aproximarem. Lembrou-se dos conselhos antigos de sua mãe para não ficar sozinho em temporais. Porém, ele não poderia retornar sem seu companheiro de aventuras: o barquinho. Ganhara-o quando tinha apenas 5 anos e desde então ele era seu brinquedo favorito. Não queria despedir-se dele naquele dia. Mesmo após uma longa jornada juntos, eles ainda tinham muito a percorrer nos grãos de areia daquela praia.
            Depois de revistar a areia toda, quase desistindo da árdua tarefa de encontrar seu amigo desaparecido devido ao vento, seus olhos arredondados pousaram em um objeto colorido no mar. Era ele! O barquinho! Seu brinquedo flutuava sobre as águas salgadas quanto tanto imaginara!
            O menino sentiu-se tomado por alegria por ver que seu barco tinha capacidade de enfrentar as ondulações do mar e ao mesmo tempo tristeza, pois sentia que havia perdido seu brinquedo para sempre, uma vez que o garoto era proibido de entrar naquelas águas.
            Mesmo sabendo do perigo das águas, ele decidiu que não queria perder de jeito nenhum seu barquinho. Aproximou-se lentamente da beira do mar. Algumas pequenas ondas formavam-se na beirada e agora aumentavam seu tamanho por conta da ventania.
            De repente, começou a chover. Muitas gotas caíram do céu. O menino correu rapidamente de volta ao local anterior, pegou a camisa que colocara na areia quente para sentar-se, sacudiu-a e amarrou-a como um chapéu em sua cabeça para tentar proteger-se um pouquinho da chuva.
            Apesar do crescente mal tempo, ele tinha um objetivo traçado: recuperar seu barco. Então, o menino correu e voltou a aproximar-se do mar.
            Poucos passos antes de seus dedos tocarem a água fria, o garoto curvou-se e cerrou um pouco os olhos, tentando focar em algo distante, mas nem tanto, que lhe chamou atenção.
            Não muito longe dali ele viu algo inacreditável até para sua imaginação fértil. Um barco ― esse de verdade!  ― localizava-se a uma distância considerável, mas não tão grande, da praia. O barco era pintado de marrom e tinha apenas uma única vela branca que estava fechada e amarrada a um tronco de madeira. Estranhamente, o barco não tinha um timão e, mesmo um tanto longe, o menino pode ver que ele tinha buracos em seu casco do fundo. O barco estava, lentamente, afundando.
            Mas, além disso tudo, outra figura chamou atenção especial do menino. Dentro do barco havia uma mulher. Essa mulher vestia-se inteiramente da cor azul do oceano. E, acima de sua cabeça, um guarda-chuva inteiramente azul também, com alguns furos, estava aberto. Ela segurava o cano dele com as duas mãos. Sentada no chão do barco, o menino apenas via o tronco da mulher. Não era possível também ver seu rosto por conta da posição lateral que ela se encontrava.
             “Engraçado...  Por que ela usa um guarda-chuva, se suas pernas devem estar todas molhadas? Esse barco não está afundando? ”, pensou o menino, observando a estranha cena.
            A chuva apenas aumentava. O barco da mulher continuava a deriva à sua frente. O barquinho de brinquedo desapareceu do alcance de visão do menino na imensidão azul.
            Desanimado com sua busca, ele decidiu pedir ajuda a mulher. “ Ei! ”, gritou ele com todas as suas forças para tentar ser ouvido entre o barulho da ventania, dos trovões e das ondulações do mar: “ Você viu um pequeno barquinho por aí? ”.
            A mulher nada disse. Não moveu sua cabeça. O barco marrom movimentava-se com a ondulação do mar. O guarda-chuva continuava aberto e mesmo segurando com tanto cuidado tal objeto o corpo da mulher era encharcado pela chuva como o do menino. Contudo, ela não parecia notar isso. Não aparentava notar nada ao seu redor. Nem que estava molhada, nem o seu barco afundando, nem o mar, nem o garoto sozinho gritando na praia, no qual, em sua visão, caso fosse visto, seria apenas um pontinho preto.
            O semblante do menino começava a mudar. Apesar de antes determinado, seu rosto passou a demonstrar cada vez mais sua decepção em não conseguir ter de volta o brinquedo. Os trovões pareciam outros e passaram a amedrontá-lo. A chuva aumentava seu volume. O garoto já estava totalmente molhado. A areia tornava-se escura a seus pés e não mais entrava em seus dedos. O mar, antes calmo, passava a ter algumas ondas.
            O barco da mulher oscilava cada minuto mais na água. Além disso, o menino tinha a sensação de que o barco já estava metade submerso. Logo o corpo daquela mulher iria ser tomado pelas águas.
            Após perceber isso o garoto preocupou-se consigo mesmo e com a mulher, vendo que a chuva não melhorava e apenas se agravava. “ Ei! Moça! Saia já daí! Abandone o barco! Ele está afundando! ”, gritou novamente o menino, dessa vez para tentar ajudar a mulher visto às circunstâncias.
            Entretanto, como da primeira vez, não obteve resposta.
            Intrigado com a situação estranha que observava, continuou ali, curioso com as atitudes daquela mulher misteriosa. O barco prosseguiu com seu encontro ao mar. Foi afundando, afundando, afundando...  Quando somente restava o guarda-chuva e a cabeça da mulher sem ter sido engolidos pelas águas, uma nova ventania passou pelo menino. Dessa vez, as ondas do mar invadiram a areia próxima a ele e tragou-o para dentro de si. Aquele corpo pequeno misturou-se subitamente com a água escura. Ele rodou dentro das ondas. Fechou a respiração e apenas aguardou.
            Quando deu conta de si, estava deitado na areia da praia, próximo às águas. O sol raiava novamente no céu e apenas algumas nuvens ainda estavam presentes. O mar estava calmo como antes. Entre o braço direito e seu corpo viu o barquinho de brinquedo. Ao ter de novo seu objeto precioso, sorriu.
            Sentou-se. Segurou o brinquedo com as duas mãos, colocou-o frente a si, no rumo de seus olhos e também do mar. Maravilhado, ele observou aquele seu companheiro como se tivesse acabado de ganhá-lo. Contudo, ao ver o mar no horizonte, lembrou-se imediatamente da mulher do guarda-chuva. Abaixou os braços com o brinquedo e olhou somente o mar. Não havia nenhum resquício da mulher e nem do barco marrom. Todavia, ele sabia que aquela cena não tinha sido apenas parte de sua imaginação.
            Assim, segurando seu brinquedo com uma das mãos, caminhou e aproximou-se novamente daquelas águas tão belas e misteriosas, simultaneamente. Quando colocou os dedos do pé no mar, um guarda-chuva azul, com furos, veio em sua direção.
            O menino esperou o objeto chegar próximo a ele. Pensou em guardá-lo consigo, como lembrança do que vira. Contudo, pouco antes de sua mão esquerda atingir o acessório, ele hesitou. Imaginou que, provavelmente, aquilo ao mar pertencia e não tinha direito de tomá-lo para si.
            Olhou para o horizonte mais uma vez. Lá no fundo, um belo arco-íris havia se formado. Após admirar a paisagem, resolveu retornar. Afinal, como bem indicava o sol no céu, já era hora do almoço e sua mãe o aguardava. O garoto virou-se para o mar que lhe proporcionara tantas aventuras em poucas horas e, sem dizer adeus, ou guardar qualquer tristeza da despedida, partiu. Escalou delicadamente as rochas em direção à sua casa. Teria muito o que contar a sua mãe. Infelizmente, ela não compreenderia a magnificência daquele dia e nem mesmo olharia o mar com o sentido que o menino agora atribuía a ele: misterioso, mas incrivelmente belo e divertido.        

sábado, 19 de novembro de 2016

O mar e o não reflexo das estrelas

A ventania fez com que o mar se tornasse revolto. No mar aberto, as ondulações apareciam aos montes.  O céu não mais refletia a beleza cristalina das águas. Nem o mar era o reflexo das estrelas. Na realidade, tudo era plena escuridão.
         Meio a tantas sombras, um corpo feminino boiava de um lado para o outro, levado pelas ondulações da imensidão azulada. Seus olhos miravam as nuvens acima de si, escuras. O céu estava fechado, não se via a lua, apesar de já ser noite. O que ela fazia ali? Não sabia. Apenas deixou, que, por um único dia e momento, o mar carregasse seu corpo. A água salgada passava por seus cabelos, por sua pele. E, sem que mexesse qualquer músculo, ela apenas se permitia ser. Deixava simplesmente que aquele lugar a levasse, conduzisse-a à algum lugar ou a lugar qualquer. Estava cansada. Exausta de escolher. Queria apenas que as águas a levassem. Para bem longe das decisões e para perto das pessoas as quais mais amava. Mas, na verdade, as ondulações levá-la-iam para a direção que bem quisessem. Afinal, o controle não estava mais com ela. Estava fora. Seus braços estavam bem abertos na horizontal. Suas pernas permaneciam coladas e a água carregava seu corpo. Ali, perdido, sozinho... sem ninguém além dele mesmo. E, mesmo em toda aquela tempestade, as preocupações dissolviam, misturavam-se ao sal, as algas, a areia no fundo do oceano.

         Fechou os olhos. Em sua mente as imagens das pessoas que mais amava em sua família vieram. Lembrou-se do carinho deles, dos abraços, dos beijos. Do amor. Daquele amor que também parecia dissolver-se e contrastava-se com a água fria da noite. Aquela realidade tão comum antes, agora visualizava-se tão distante, como sendo estranha a si. Havia uma felicidade que ela não podia descrever naquelas lembranças. Uma felicidade a qual ficara escondida durante muito tempo enquanto vivia tudo aquilo. Agora... ela despertava para tudo que vivera. 

Em uma tarde qualquer

Sentei-me à mesa da cafeteria. A garçonete veio ao meu encontro e disse para eu ficar à vontade. Agradeci, e logo que abri o cardápio já tinha em mente qual seria meu pedido. “Por favor, um frozen de cappuccino e um pão de queijo”, disse a ela. A mulher anotou o pedido e foi prepará-lo. Rapidamente ouvi o barulho do liquidificador batendo o frozen, o cheiro de café que exalava da máquina, devido ao pedido de outros clientes e a luminosidade amarela a qual deixava o ambiente mais confortável, junto as suas poltronas esverdeadas.
             Como não tinha nenhuma companhia para distrair meus pensamentos, além da breve análise daquele local confortável, observei o casal ao lado. Um homem e uma mulher, ambos de meia idade, repartiam a mesa e tomavam um café simples. Uma cena de não tanta excentricidade, porém, chamou-me atenção o fato da mulher estar com o rosto um pouco vermelho e passar repetidas vezes a mão nos olhos. Estaria ela chorando?   O homem dizia algo que parecia afastá-la dele, não fisicamente, mas emocionalmente. Seus gestos com as mãos e a forma decepcionada com que ela mirava- o transmitiam-me essa impressão.
            Será que eram namorados e passavam por uma crise de relacionamento? Ou, ele estava definitivamente terminado o namoro? Ou, será que ambos não tinham nenhuma relação íntima, sendo apenas sócios de uma empresa perto da falência? Tais perguntas cresceram em minha mente.
            Café expresso. Era um encontro simples. Um daqueles que se faz no meio da tarde quando as pessoas na mesa já comeram em outro lugar anteriormente, mas a dependência de cafeína ou apenas a necessidade de ter um encontro social simples fazia com que as cafeterias sempre estivessem cheias. Mas aquela conversa não se assemelhava a simplicidade. Complexidade. Algo acontecia na mente daquela mulher avermelhada que o mirava com tristes olhos. E de tão tristes e tão profundos eu me perdi neles.
            Naquele momento, senti como, apesar de sozinha, eu estava em pleno equilíbrio, enquanto a outra mulher, essa acompanhada, parecia ter sua pele queimada, seus órgãos estilhaçados, e seus músculos desintegrados enquanto ouvia o rapaz a sua frente.
            Após mais algum tempo observando percebi que minha segunda hipótese era certeira. Ela tinha vontade de ir embora, sabia disso. Ela queria que ele parasse de falar tantas besteiras. Desejava apenas estar envolta em seus braços, com nenhuma palavra propagando-se no ar. Ansiava os ouvidos limpos e claros e o coração cheio. Preenchido do amor. Mas daquele amor puro. Amor infantil, adolescente, platônico. Aquele amor que quase nunca se encontra nas novelas televisivas, nos filmes, nos romances, pois parece muito bobo à vista de quem não o sente. Todavia, ele existe e é um dos mais maravilhosos amores. Existe nos becos, às escuras, tímido como um gato de rua ao aproximar-se de alguém desconhecido. Quieto, alastra-se nos corações mais puros e singelos. E, na maioria das vezes, não sai do peito dos amantes. Fica ali, guardado, escondido. Uma joia preciosíssima em tempos tão escassos de amor. E era aquele tipo de amor que se resguardava em tais olhos tristes e profundos.
            Eu sabia, apenas de olhar para aquela mulher, que era esse tipo de sentimento o qual passava-se dentro de si. Eu sabia, porque já o havia sentido. Já guardara muitos amores no peito. Os quais carregava apenas comigo. Não eram de mais ninguém, só meus. Íntimos, escondidos. Mas, sentidos.
            E como doí a separação dos amantes. O coração bate mais forte, os olhos forram-se de lágrimas e a boca fica seca, você quer transmitir todo aquele amor, mas é um amor que não se transmite. As palavras não são suficientemente boas para fazê-lo. Por isso, o apelidei de amor mudo.
            Acredito que poucas pessoas já sentiram o amor mudo. E aquela mulher era uma minoria. O homem não a amava. Eu via em seus gestos de mãos e da falta de açúcar que colocara no café. O açúcar deixara de preenchê-lo há muito e agora a amargura do café espalhava-se para cima daquela que o amava.
             Amor mudo. Aquele amor raro. Eu o encontrei naquele dia, inesperadamente, num rosto qualquer de uma cafeteria. Quanto tempo já havia se passado desde que eu sofri daquele amor, por um homem que não o sentia? Já nem me lembrava mais. Mas, com certeza, meu olhar fora como o daquela mulher, um olhar triste e profundo. O da mais pura descrença no outro, e em mim, que falhamos no amor, e diante disso, podíamos falhar em qualquer outra coisa que não teria diferença. O amor era a diferença. Amar exige capacidade de lidar com a diferença do outro.

            “Aqui está seu frozen e pão de queijo. ”, disse a garçonete, deixando sobre a mesa os pedidos. “Obrigada”, respondi, como se quisesse encontrar dentro de mim o amor, onde somente existia um cappuccino gelado, um pão de queijo frio e uma tarde qualquer em uma cafeteria.