![]() |
| Imagem de Armim Mesmman. |
O telefone começou a tocar
incessantemente. Nos fundos da casa eu observava o céu e desenhava com grafite
quando o som da chamada interrompeu meus traçados na fina folha que, vez ou
outra, costumava rasgar, devido a minha dificuldade em controlar a força a ser
exercida por meus dedos sobre a imensidão branca. Levantei-me o mais rápido que
pude de cadeira, infelizmente o mais rápido meu não era mais assim tão ágil. As
pernas já pesadas pela idade, dificultavam meus movimentos. Calcei o chinelo de
dedo e continuei em direção ao telefone. Meu pequeno cachorro latia
excessivamente pelo barulho. Finalmente, próxima ao objeto, atendi.
–
Alô?
–
Olá Júlia, tudo bem? Quem fala aqui é Carla, sua amiga das aulas de desenho.
–
Olá Carla. Estou bem, obrigada.
–
Que bom.
–
E você?
–
Bem. Liguei pois gostaria de te avisar, amanhã a tarde acontecerá uma exposição
de arte na Igreja. Você não quer participar? Basta levar algum desenho seu para
mostrar.
–
Até gostaria, mas talvez eu não tenha nada para mostrar.
–
Não diga isso, você é ótima! Não recuse, já contei sobre seu trabalho para um
amigo meu e ele esta empolgado para ver algo seu.
–
Oh, Carla. Eu não sou artista como você, entende? Faço apenas para passar o
tempo.
–
Pois faz com muito amor, tenho certeza! Não seja egoísta, a arte existe para
emocionar as pessoas, deve mostrar seus desenhos aos outros também!
Concordei
com ela, apesar de não possuir realmente algum retrato que pudesse se encaixar
exatamente no objetivo de emocionar as pessoas que o vissem. Porém, eu não
queria magoá-la ao não comparecer. Assim, despedimo-nos, após combinarmos de
que ela me levaria de carro até a Igreja, as nove horas da manhã do dia
seguinte.
Olhei
para o relógio. Já eram duas horas da tarde. Pouco tempo teria eu para inventar
algo novo para desenhar. Resolvi, portanto, procurar dentro de minhas pastas
alguma folha que me orgulhasse o suficiente para exibir. Fui até um dos quartos acompanhada de meu pequeno
animal. Nas prateleiras, inúmeras pastas pretas estavam guardadas. Peguei
uma das pastas, sentei-me na beirada da cama e comecei a folhear. Havia frutas,
florestas, vasos, casas em meio a bosques, paisagens do mar, flores. Aqueles eram
meus primeiros desenhos. Depois vieram as tentativas de retratar animais de
diversos tipos, cavalos, cachorros, gatos... E, por último, os traços já
formavam pessoas. A sequência começava a partir do treino de partes separadas
com rabiscos de bocas, narizes, olhos. Em seguida, vinham imagens mais
completas de um busto de alguma personalidade histórica ou algo semelhante. Vi
diversos rostos diferentes. Nenhum deles pareceram realmente emocionantes para
mim.
De
repente, meu cão subiu sobre a cama e tocou a pasta com o focinho gelado para
chamar minha atenção. A pasta escorregou de meus dedos e caiu no chão. O
repreendi pelo ato e me abaixei para recolher o objeto. Porém, próximo ao pé da
cama notei uma folha solta com um papel mais amarelado. Intrigada, o recolhi. Observava
naquele momento um rosto de perfil com dois olhos muito bonitos e arredondados.
Entretanto, aquele não era qualquer rosto. Era de um garoto que havia conhecido
em minha adolescência, pelo qual meu coração batia acelerado e a vontade de
viver se acentuava. Infelizmente, eu não me lembrava daquele retrato de grafite
e, em tal ocasião, ele apareceu para mim, como um presente.
Eu
o desenhara de perfil, com os cabelos lisos penteados para trás. Seu olhar era
o mais belo, pois seus olhos pareciam mirar algo a sua frente. Sua boca pouco
entreaberta parecia encarar a coisa mais preciosa de sua vida. Eu o havia
desenhado da maneira que eu o observava enquanto ele admirava as árvores no bosque.
Seus olhos sempre pareceram ter um brilho diferente para mim.
Minha mente perdeu-se por alguns instantes
diante daquela imagem. Lágrimas começaram a escorrer através de minhas
bochechas. Eu o amava muito, mas nós nunca ficamos juntos devido as circunstancias
da vida. Nossos rumos se separaram e, depois do natal de meus quinze anos,
nunca mais o vi. Há dois anos atrás soube por meio de uma amiga que ele havia
falecido de câncer. Aquela notícia havia me deixado triste, mas nada comparado
ao fato de ver a folha fixa em minhas mãos. Era como se o passado jorrasse
dentro de minha alma, como uma correnteza trazendo diversos sentimentos a tona.
Em
seguida, de uma forma meio instintiva, fui até os fundos da casa, peguei uma
nova folha e os grafites que utilizava para o desenho anterior a ligação.
Sentei-me diante da mesa de madeira qual usava para fazer os traçados e acabei
perdendo-me nas horas que passei ali. Quando consegui um traçado tão belo, e
até mais firme em relação ao original, já havia anoitecido.
Limpei
os dedos pretos pelo grafite na pia mais próxima. Recolhi uma moldura de vidro
transparente e coloquei o desenho dentro dela. Quando terminei, suspirei e
observei o trabalho que havia feito. Realmente, eu acreditava ter feito o
desenho mais belo do mundo.
No
outro dia, estava eu, na Igreja da cidadezinha em que moro. Deus
deveria estar contente naquele dia, pois sua casa estava inteiramente decorada
por diversos artistas. Uns exibiam telas de tinta a óleo, outros painéis, alguns
mostravam fotografias de belas paisagens.
Carla havia ficado com seus desenhos em
exposição próxima a mim, e sorria como nunca ao receber elogios de alguns
senhores que passavam por ali. Já eu, via-me contente somente por poder
observar tantas obras ao mesmo tempo! Como era boa a sensação de pertencer a
algum meio novamente. Sentia- me bem tranquila ali, até que Carla trouxe em
seus braços um senhor bem vestido. Seus cabelos eram finos e quase totalmente
brancos. Seu corpo, apesar de magro, não mostrava-se frágil.
– Essa é a senhora de quem lhe falei. Júlia, este é Felipe. Felipe, esta é
Júlia.
Ele
cumprimentou-me muito educadamente com um beijo no rosto. Depois, parou frente
a meu desenho e o observou silenciosamente, como se estivesse envolto em algum
tipo de magia. Carla resolveu deixar-nos a sós, pois outras pessoas se juntavam
ao redor de suas obras. Enquanto o senhor observava meu retrato, eu o
observava. E, estranhamente, quando reparei nos olhos de Felipe, percebi que
eram tão arredondados quantos o de meu desenho, e a beleza também equivalia.
Em
pouco tempo percebi que ele e meu desenho eram a mesma pessoa! Tive certeza
absoluta disso naquele momento, entretanto, nada fiz! Afinal, foi uma surpresa, porque eu
achava que ele estivesse morto há dois anos atrás... Foi como se um branco me atingisse
naquele momento. Eu conseguia apenas me recordar do tempo qual havíamos
passados juntos, dele jovem e alto...
Então passamos minutos assim, ambos encarando
a mesma imagem. Eu relembrava de tantas coisas, e pensava em outras mais para
conversar com ele, porém, minha garganta parecia selada e calada
pelo tempo.
Depois
de alguns minutos, Felipe voltou-se a mim, e disse, após o longo silêncio, já despedindo-se:
–
É um belo retrato minha senhora. Guarde-o em seu coração. Pois, nele, tenho
certeza de que este jovem sempre existirá.
Ele
beijou meu rosto novamente. Eu não disse nada e o observei ir embora, da mesma
forma que o observei com quinze anos. Desde então, nunca mais o vi. Dificilmente
saberei se aquele homem realmente era o mesmo Felipe de antigamente. Mas,
independente de qual for a verdade, aquele garoto estará para sempre vivo em mim,
através daquele retrato, daquele grafite, daqueles traços e daquelas memórias,
que de tão antigas, sempre se renovam.
