segunda-feira, 1 de agosto de 2016

O retrato

Imagem de Armim Mesmman.
O telefone começou a tocar incessantemente. Nos fundos da casa eu observava o céu e desenhava com grafite quando o som da chamada interrompeu meus traçados na fina folha que, vez ou outra, costumava rasgar, devido a minha dificuldade em controlar a força a ser exercida por meus dedos sobre a imensidão branca. Levantei-me o mais rápido que pude de cadeira, infelizmente o mais rápido meu não era mais assim tão ágil. As pernas já pesadas pela idade, dificultavam meus movimentos. Calcei o chinelo de dedo e continuei em direção ao telefone. Meu pequeno cachorro latia excessivamente pelo barulho. Finalmente, próxima ao objeto, atendi.
            ­– Alô?
            – Olá Júlia, tudo bem? Quem fala aqui é Carla, sua amiga das aulas de desenho.
            ­–  Olá Carla. Estou bem, obrigada.
            – Que bom.
            – E você?
            – Bem. Liguei pois gostaria de te avisar, amanhã a tarde acontecerá uma exposição de arte na Igreja. Você não quer participar? Basta levar algum desenho seu para mostrar.
            – Até gostaria, mas talvez eu não tenha nada para mostrar.
            – Não diga isso, você é ótima! Não recuse, já contei sobre seu trabalho para um amigo meu e ele esta empolgado para ver algo seu.
            – Oh, Carla. Eu não sou artista como você, entende? Faço apenas para passar o tempo.
            – Pois faz com muito amor, tenho certeza! Não seja egoísta, a arte existe para emocionar as pessoas, deve mostrar seus desenhos aos outros também!
            Concordei com ela, apesar de não possuir realmente algum retrato que pudesse se encaixar exatamente no objetivo de emocionar as pessoas que o vissem. Porém, eu não queria magoá-la ao não comparecer. Assim, despedimo-nos, após combinarmos de que ela me levaria de carro até a Igreja, as nove horas da manhã do dia seguinte.
            Olhei para o relógio. Já eram duas horas da tarde. Pouco tempo teria eu para inventar algo novo para desenhar. Resolvi, portanto, procurar dentro de minhas pastas alguma folha que me orgulhasse o suficiente para exibir. Fui até um dos quartos acompanhada de meu pequeno animal. Nas prateleiras, inúmeras pastas pretas estavam guardadas. Peguei uma das pastas, sentei-me na beirada da cama e comecei a folhear. Havia frutas, florestas, vasos, casas em meio a bosques, paisagens do mar, flores. Aqueles eram meus primeiros desenhos. Depois vieram as tentativas de retratar animais de diversos tipos, cavalos, cachorros, gatos... E, por último, os traços já formavam pessoas. A sequência começava a partir do treino de partes separadas com rabiscos de bocas, narizes, olhos. Em seguida, vinham imagens mais completas de um busto de alguma personalidade histórica ou algo semelhante. Vi diversos rostos diferentes. Nenhum deles pareceram realmente emocionantes para mim.
            De repente, meu cão subiu sobre a cama e tocou a pasta com o focinho gelado para chamar minha atenção. A pasta escorregou de meus dedos e caiu no chão. O repreendi pelo ato e me abaixei para recolher o objeto. Porém, próximo ao pé da cama notei uma folha solta com um papel mais amarelado. Intrigada, o recolhi. Observava naquele momento um rosto de perfil com dois olhos muito bonitos e arredondados. Entretanto, aquele não era qualquer rosto. Era de um garoto que havia conhecido em minha adolescência, pelo qual meu coração batia acelerado e a vontade de viver se acentuava. Infelizmente, eu não me lembrava daquele retrato de grafite e, em tal ocasião, ele apareceu para mim, como um presente.
            Eu o desenhara de perfil, com os cabelos lisos penteados para trás. Seu olhar era o mais belo, pois seus olhos pareciam mirar algo a sua frente. Sua boca pouco entreaberta parecia encarar a coisa mais preciosa de sua vida. Eu o havia desenhado da maneira que eu o observava enquanto ele admirava as árvores no bosque. Seus olhos sempre pareceram ter um brilho diferente para mim.
             Minha mente perdeu-se por alguns instantes diante daquela imagem. Lágrimas começaram a escorrer através de minhas bochechas. Eu o amava muito, mas nós nunca ficamos juntos devido as circunstancias da vida. Nossos rumos se separaram e, depois do natal de meus quinze anos, nunca mais o vi. Há dois anos atrás soube por meio de uma amiga que ele havia falecido de câncer. Aquela notícia havia me deixado triste, mas nada comparado ao fato de ver a folha fixa em minhas mãos. Era como se o passado jorrasse dentro de minha alma, como uma correnteza trazendo diversos sentimentos a tona.
            Em seguida, de uma forma meio instintiva, fui até os fundos da casa, peguei uma nova folha e os grafites que utilizava para o desenho anterior a ligação. Sentei-me diante da mesa de madeira qual usava para fazer os traçados e acabei perdendo-me nas horas que passei ali. Quando consegui um traçado tão belo, e até mais firme em relação ao original, já havia anoitecido.
            Limpei os dedos pretos pelo grafite na pia mais próxima. Recolhi uma moldura de vidro transparente e coloquei o desenho dentro dela. Quando terminei, suspirei e observei o trabalho que havia feito. Realmente, eu acreditava ter feito o desenho mais belo do mundo.
            No outro dia, estava eu, na Igreja da cidadezinha em que moro. Deus deveria estar contente naquele dia, pois sua casa estava inteiramente decorada por diversos artistas. Uns exibiam telas de tinta a óleo, outros painéis, alguns mostravam fotografias de belas paisagens.
             Carla havia ficado com seus desenhos em exposição próxima a mim, e sorria como nunca ao receber elogios de alguns senhores que passavam por ali. Já eu, via-me contente somente por poder observar tantas obras ao mesmo tempo! Como era boa a sensação de pertencer a algum meio novamente. Sentia- me bem tranquila ali, até que Carla trouxe em seus braços um senhor bem vestido. Seus cabelos eram finos e quase totalmente brancos. Seu corpo, apesar de magro, não mostrava-se frágil.
            ­ ­ – Essa é a senhora de quem lhe falei. Júlia, este é Felipe. Felipe, esta é Júlia.
            Ele cumprimentou-me muito educadamente com um beijo no rosto. Depois, parou frente a meu desenho e o observou silenciosamente, como se estivesse envolto em algum tipo de magia. Carla resolveu deixar-nos a sós, pois outras pessoas se juntavam ao redor de suas obras. Enquanto o senhor observava meu retrato, eu o observava. E, estranhamente, quando reparei nos olhos de Felipe, percebi que eram tão arredondados quantos o de meu desenho, e a beleza também equivalia.
            Em pouco tempo percebi que ele e meu desenho eram a mesma pessoa! Tive certeza absoluta disso naquele momento, entretanto, nada fiz! Afinal, foi uma surpresa, porque eu achava que ele estivesse morto há dois anos atrás... Foi como se um branco me atingisse naquele momento. Eu conseguia apenas me recordar do tempo qual havíamos passados juntos, dele jovem e alto...
             Então passamos minutos assim, ambos encarando a mesma imagem. Eu relembrava de tantas coisas, e pensava em outras mais para conversar com ele, porém, minha garganta parecia selada e calada pelo tempo.
            Depois de alguns minutos, Felipe voltou-se a mim, e disse, após o longo silêncio, já despedindo-se:
            – É um belo retrato minha senhora. Guarde-o em seu coração. Pois, nele, tenho certeza de que este jovem sempre existirá.

            Ele beijou meu rosto novamente. Eu não disse nada e o observei ir embora, da mesma forma que o observei com quinze anos. Desde então, nunca mais o vi. Dificilmente saberei se aquele homem realmente era o mesmo Felipe de antigamente. Mas, independente de qual for a verdade, aquele garoto estará para sempre vivo em mim, através daquele retrato, daquele grafite, daqueles traços e daquelas memórias, que de tão antigas, sempre se renovam.