domingo, 15 de maio de 2016

Cálidas memórias


 Maria parou curiosa frente ao espelho do banheiro. Quem era a senhora que se mostrava diante de si? Que pele pálida de olhos fundos e vazios era aquela? Os cabelos ralos, o rosto enrugado, marcado por um tempo do qual talvez ela nem se lembrasse mais. Era irreconhecível de si mesma. Quem é essa mulher, afinal? Apertou os olhos, forçando a vista embaçada, a fim de tentar enxergar melhor.
Estava frio lá fora, mas não ali. O vapor quente do banho havia revestido o vidro com vapor e dificultava ainda mais a visão da idosa. Maria esticou a mão. Limpou delicadamente o espelho com os dedos, como uma criança que instintivamente brincasse de desenhar naquele local. A imagem melhorou, mesmo assim, não reconhecia mais aquele rosto. Os olhos lhe pareciam tão simplórios, sem sopro de vida ou entusiasmo. A boca era ressecada e os lábios finos.
Oh Deus, que mulher estranha era aquela em sua casa? Como poderia saber? Ela lhe parecia uma completa desconhecida, ao mesmo tempo, inexplicavelmente próxima. Sem obter respostas imediatas, deixou a dúvida de lado.
― Olá ― disse Maria, com toda a educação qual usaria para tratar alguém de maneira formal. ― Está muito frio hoje, é melhor que a senhora continue aí mesmo. Com sua licença.
A idosa saiu do banheiro, já com suas roupas de dormir. Sua filha fazia o jantar na cozinha e ouviu a mãe resmungar a situação incômoda em ter uma estranha a espiando no banheiro.
― Mãe, venha comer. A sopa está pronta. ― Disse a filha, colocando o prato fundo, já com o caldo quente na mesa. Entretanto, a mãe nada respondeu. Simplesmente, continuou sentada no sofá, com o olhar fixo e longínquo.
A filha suspirou. Esquecera-se de que a mãe que tivera em épocas atrás não mais respondia como antes. Esquecera-se, por um instante, da doença. Esquecera-se de que Maria nem mais recordava o que era ser mãe, ou o que era ser Maria. Mesmo assim, a mulher aproximou-se da senhora. Fez gestos para incentivar sua movimentação. Auxiliou-a para levantar e a encaminhou gentilmente até a mesa. Sentando-a, por fim, na cadeira.
― Olhe, fiz especialmente para você. Sei que não se lembra, mas essa receita é de sua autoria. A senhora costumava preparar quando eu sentia com muito frio e precisava aquecer por dentro, como ouvia sempre dizer.
A mãe apenas levantou o olhar vazio para o rosto da filha. Nada disse, como quem nada tivesse vivido. Apenas abriu levemente a boca em sinal de querer tomar a sopa. A filha, compreendendo com um semblante triste a mensagem simples, sentou ao lado, entregou-lhe a colher e a ajudou com o necessário durante a refeição.
― Ficarei aqui esta noite no lugar de Leonardo, certo? ― disse a filha, recolhendo os pratos, levando-os até a pia.
― Leonardo? Não me recordo desse nome. ― respondeu a idosa. Irritada com a própria situação de dependência qual rondava ao seu redor, exclamou, em seguida:
― Deixe-me sozinha um pouco! Não preciso de ninguém aqui comigo.
― Pode ficar calma. Dormirei na outra cama, assim não atrapalharei.
Maria assentiu com a cabeça. Novamente, o olhar fixo retornou. Ela queria fazer algo..., porém, como era o nome? Qual era a coisa que se chamava aquele objeto? Sim, ela queria coisar na Coisa. Como? Começava a enfurecer-se. Era impossível. Nenhuma palavra vinha a sua mente para que ela pudesse deduzir a imagem daquilo projetado em sua imaginação. Pesquisava em seu vocabulário, esse antes tão rico e belo, agora destruído e caótico. Ela era uma mulher que amava ler, todavia, nem mais relembrava os nomes das inúmeras obras que outrora amara, pois dificilmente conseguia lembrar-se como fazia para traduzir em palavras as mais básicas atitudes e emoções. Isso era o pior de sua morte lenta.
 Irritada já com a imensa pesquisa vã em sua mente, empurrou, com uma força resgatada de não se sabe onde, o copo de cerâmica ao chão. A filha assustou-se imediatamente, olhando para trás. A mulher mirou rapidamente os cacos do objeto antes deixado ali para que ela tomasse água com os remédios, espalhados agora sobre o piso branco. Barrou, com uma ordem, sua mãe, qual insistia em levantar-se pisando sobre os pedaços cortantes. Sem demora, a filha buscou a vassoura com a pá e limpou o recinto. Logo após a limpeza, a senhora levantou-se, fazendo uso de passos lentos até o seu quarto.
Aliviada, a filha deu um longo suspiro. As olheiras de sua face já exprimiam todo o cansaço de ter cuidado da idosa durante o dia todo. Poderia, enfim, acalmar-se um pouco com o descanso da doente.
“Aqui está”, pensou Maria, ao observar a cama antes de deitar-se. “ A Coisa”.
Ainda sem obter uma resposta sobre qual a melhor palavra para definir o que chamava apenas de Coisa, acomodou seu corpo magro debaixo das cobertas.
De madrugada, pouco tempo antes do amanhecer, algum barulho na rua despertou Maria subitamente. Provavelmente tinha sido apenas o som dos carros, contudo, isso a acordou e ela não conseguiu dormir novamente. Afinal, agora que havia aberto os olhos, um medo havia arrebatado seu coração. O medo do escuro. Nunca o tivera, porém, após a velhice já afetar seu corpo e mente, os temores eram muitos.
Entretanto, além do medo, sentiu algo diferente dentro de si. Ela não sabia explicar direito. Mas, era uma vontade de sair dali. Correndo, se fosse possível. Ansiava ir para bem longe da escuridão e para bem longe da estranheza daquela casa antiga que havia morado durante anos. De súbito, uma espécie de espírito adolescente a tinha cometido. Não sabia se estava em plena consciência naquele momento, ou se podia identificá-lo como um período de interrupção daquilo que extinguia todo seu conhecimento.  
Enfrentando seu maior medo, o escuro, levantou da cama, pé após pé e alcançou o interruptor. A luz espalhou-se pelo quarto, e um pequeno sorriso abriu-se, revelando um semblante aliviado.
 Em seguida, sentiu frio. Avistou o sobretudo preto da filha, pendurado em seu cabideiro. Sem pensar, pegou a roupa e a vestiu por cima do pijama, juntamente com um sapato fechado.
Em silêncio, sem que a jovem pudesse acordar, a mãe aproveitou que as chaves estavam na fechadura, as girou, e saiu cautelosamente da casa para as infinitas ruas da cidade.
Um sentimento, o qual Maria não conseguia identificar o nome, a ocorreu. Como sua nomeação formal havia fugido, apenas pensou sentir-se como um pássaro, contudo, com uma das asas quebradas, pois seus passos eram muito lentos.
Sua casa localizava-se ao centro de uma cidade do interior paulista. O bairro não era o mais seguro, todavia, ninguém ali haveria de mexer com uma senhora debilitada e de pijama. A essa hora, o dia já começava a clarear os prédios. Maria passava por eles, encantada com tudo aquilo, extremamente maravilhada com o velho desconhecido. Adentrava em um novo mundo para si, onde nem tudo se resumia a face descorada vista no banheiro.
Observava os diversos lugares diferentes, olhava a tudo, sem conseguir pertencer a nada. Não haviam lembranças, sentimentos por ali. Não existia nem uma gota disso, a medida que deixara de possuir até mesmo as palavras, os substantivos de cada objeto, de cada bela visão.
Seus passos, já lentos, foram reduzindo ainda mais o ritmo. Suas pernas começaram a doer. O sol ardia, ainda tímido, no alto. A movimentação de carros iniciava seu fluxo. A vida entrava novamente em seu ritmo. Entretanto, não ela, não Maria. Maria estava perdida. Pensara errado ao tentar encontrar a si mesma em uma aventura adolescente. Afinal, que faria ela? Velha, debilitada, frágil, andar no meio de toda a turbulência cotidiana?
Após aqueles momentos de devaneios, deu-se conta de estar sozinha, em um local inusitado. Isso foi suficiente para desesperá-la. Contudo, de que valia o desespero, se nem conseguia agir como quem o possuía?
Olhando as inúmeras lojas ao redor, seus olhos fundos miraram uma loja de colchões e camas. Suas emoções de temor mescladas a solidão cessaram.
Por alguns minutos, finalmente, ela conseguiu lembrar de uma faceta de si.
Foi invadida por inúmeras fases de sua vida, mas agarrou-se a apenas uma. Recordou de sua infância, das memórias mais profundas, quase já esquecidas. Estava ela com sua mãe já há muito falecida, num pequeno cômodo. Maria, sentada no chão, chorava de medo. Ela havia acabado de mudar-se para a cidade em que se localizava atualmente. O pai a havia abandonado junto a mãe. Com o dinheiro recebido da demissão da mãe no último serviço que trabalhara, ela comprou uma cama com um delicioso colchão para as duas.
Lembrou-se exatamente daquele dia em que vira sua mãe esbanjar alegria ao entrar com aquele enorme colchão no quarto. Depois, viu-se durante a primeira noite naquele local, abraçada e acolhida pelo calor maternal da mulher qual a criara.
Lágrimas escorreram espontaneamente por sua pele áspera. Talvez, nunca mais pudesse ter tais minutos de recordações, capazes de preencherem seu peito do mais puro amor existente.
Uma mão encostou em seu ombro direito. Maria virou lentamente o rosto, vendo a filha, que logo disse:
― Graças a Deus a encontrei! Nunca mais faça isso comigo!
A senhora apenas acenou com a cabeça e voltou a fitar a vitrine com os inúmeros... o que? Como chamava-se mesmo aqueles objetos responsáveis por despertar dentro de si tamanhas recordações? A Coisa... não, essa não era a nomeação correta.
― Qual o problema, mãe? Vamos para casa, está frio. Que tanto olha esses colchões?
Sim! Colchões! Finalmente havia se lembrado da palavra. Então aquilo era um colchão e as outras...  Ah sim, camas! A felicidade envolveu seu coração dando-lhe a mais bela sensação, mesmo ela sabendo que em breve se esqueceria novamente dos nomes. Entretanto, naqueles pequenos segundos, fechou os olhos aliviada e apenas respirou. Era como se, enfim, tivesse voltado a viver...
― Mãe? A senhora está bem? ― questionou a filha, vendo o comportamento diferente da idosa.
A intervenção foi suficiente para que as memórias esvaíssem de sua mente, como a água escorre entre os dedos e a vida escorre entre o tempo.
Maria, já parada, olhou curiosa frente a vitrine. Quem era aquela senhora que se mostrava diante de si? Ah, a semelhança extinguia qualquer dúvida. Novamente era incomodada pela estranha do banheiro, agora não mais somente do banheiro.
― Até aqui você me persegue? ― indagou a mãe para seu vago reflexo no vidro.
― Enquanto você viver, mãe, ela sempre te perseguirá, e não há nada que possa fazer quanto a isso. ― afirmou a filha ― Agora, vamos. Prepararei um chocolate quente para você...  Isso, venha. Devagar. Um pé, depois o outro.






terça-feira, 3 de maio de 2016

A caminhada da mente


            Sigo todos os passos como rege o costume. Entro com o pé direito no ambiente de meditação. Caminho até o local onde está o zafu. Cumprimento. Viro à direita. Cumprimento. Giro a faixa branca da almofada para a parede. Sento. Com os três dedos da mão direita seguro o zafu e com a mão esquerda apoio no chão. Viro-me. Agora, estou de frente para a imensidão branca. Com as palmas da mão voltadas para cima no rumo dos joelhos, balanço o corpo até senti-lo parar. Paro. Faço o mudra cósmico, ajeitando as costas em postura ereta. Esvazio três vezes os pulmões. Coloco a língua no palato da boca. Pouso a visão. Pronto.
            Agora, volto-me a respiração. Como ela está? Rápida, lenta, abdominal... apenas curta e num ritmo normal. Logo, observo. Percebo os pássaros cantando lá fora. Os cães latindo desesperadamente. O cheiro do incenso queimando nas proximidades dali. O som do relógio tocando interminavelmente. O tempo não cessa, mas bem que poderia.
            – Sempre volte para a respiração. – sussurra uma voz dentro de mim.
        Sim, a respiração. Quase alimento uma corrente de pensamentos, talvez indomável. Então continuo. Tento respirar pelo abdome. Sinto a barriga encher de ar e voltar. Encher... nossa lembrei-me do meu cachorro fazendo isso. Ele fica tão lindo quando dorme. Estou com saudade de vê-lo dormir, pois estamos separados. Nossa, será que ele está bem sem mim? Esses dias está tão frio .... Espero que tenham colocado a roupinha nele. Opa, esqueci-me novamente da respiração. Está difícil me concentrar hoje.
            Inspira. Expira. Sinto o vento balançando a minha roupa. Observo o barulho da água caindo na fonte. A canção dos pássaros. Como é tão belo o canto! Canto? Tenho que treinar uma música para o coral da semana que vem. As provas estão se aproximando. Isso não é bom. Queria eu ser tão boa quanto os pássaros para cantar bem e adquirir uma boa nota na avaliação.
            Pássaro? A respiração. Inspir... minhas costas estão doendo. Ainda não me acostumei com a postura, mas não posso me mexer muito. Ajeito um pouco os dedos no mudra, pois eles tendiam a sair da posição. Pronto.
            Será que vai demorar muito para acabar? Não, pare de pensar assim. Concentra. Você pode aguentar uma dorzinha nas costas, está ficando velha, mas nem tanto...  Minha perna dormiu. Isso não é bom. Do que tem medo? Pare de alimentar seus pensamentos.             Certo. Respiração.
             A mulher ao meu lado está tossindo. Ela faz muito barulho, isso está me atrapalhando. Ai meu Deus! Tossiu de novo! E de novo! Pode ser contagiosa, porém, não posso me afastar. Só falta eu pegar outra doença de novo. Não sai do hospital semana passada e nunca fiz tanto exame de sangue em minha vida. Foi terrível, com certeza. Tal situação não pode se repetir. Essas pessoas deveriam usar máscara quando estiverem gripadas, como no Japão. Os japoneses sempre têm razão em tudo, é impressionante. Como gostaria que nosso país aprendesse algo com eles. Seria muito bom. Provavelmente, o Brasil poderia até mesmo ultrapassar os Estados Unidos, afinal, nós temos recursos ecológicos muito bons para nos mantermos. Bom, por enquanto. Antes que o governo decida vender parte deles.
            Dor nas costas, novamente. A postura! Quase esqueci-me por completo dela. Quem mandou pensar em política numa hora dessas. Ajeita o corpo, isso. Agora... somente a respiração, chega de pensar! Inspira... Ex ... não sinto mais minhas pernas. Por acaso esqueceram de tocar o sino? Aposto que algum dos membros devem ter entrado em profunda meditação e esqueceu de olhar o relógio. Ou talvez tenham deixado de acertar a hora, por conta do horário de verão, vai saber. São apenas dez minutos, impossível demorarem tanto assim. Como podem ter deixado de tocar algo tão importante? Não sei.
            Essa não. Divaguei novamente.  Está difícil controlar-me. Deve ser porque estou magoada depois de ter brigado com meu namorado ontem à noite. Também, não resisti. Ele esgotou minha paciência. Provavelmente nosso namoro está terminado. Bom, caso continue não fazendo questão de mim, que procure a ex-namorada dele.
            Cheiro de incenso. E o sino? Não ouço nada. Talvez a dormência dos membros inferiores tenha afetado também meus ouvidos. Fique calma. Pare de se sentir aflita, já deve estar terminando. Inspira...  Expira... O sino! Agora o ouvi tocar, tenho certeza. Obrigada relógio!
            Cumprimento para a parede. Balanço, com as palmas da mão para cima, lentamente o corpo até despertar. Seguro novamente na almofada e giro para o centro pela direita. Levanto. Contento-me interiormente por poder andar um pouco. Além disso, relaxo, pois a circulação das pernas começa a melhorar.
            Inicio a meditação caminhando. Isso. Devagar. De meio em meio passo.
            Inspira...  Expira...