Maria parou curiosa frente ao espelho do banheiro. Quem era a senhora que se mostrava diante de si? Que pele pálida de olhos fundos e vazios era aquela? Os cabelos ralos, o rosto enrugado, marcado por um tempo do qual talvez ela nem se lembrasse mais. Era irreconhecível de si mesma. Quem é essa mulher, afinal? Apertou os olhos, forçando a vista embaçada, a fim de tentar enxergar melhor.
Estava
frio lá fora, mas não ali. O vapor quente do banho havia revestido o vidro com
vapor e dificultava ainda mais a visão da idosa. Maria esticou a mão. Limpou delicadamente
o espelho com os dedos, como uma criança que instintivamente brincasse de
desenhar naquele local. A imagem melhorou, mesmo assim, não reconhecia mais
aquele rosto. Os olhos lhe pareciam tão simplórios, sem sopro de vida ou
entusiasmo. A boca era ressecada e os lábios finos.
Oh
Deus, que mulher estranha era aquela em sua casa? Como poderia saber? Ela lhe
parecia uma completa desconhecida, ao mesmo tempo, inexplicavelmente próxima. Sem
obter respostas imediatas, deixou a dúvida de lado.
―
Olá ― disse Maria, com toda a educação qual usaria para tratar alguém de
maneira formal. ― Está muito frio hoje, é melhor que a senhora continue aí
mesmo. Com sua licença.
A
idosa saiu do banheiro, já com suas roupas de dormir. Sua filha fazia o jantar
na cozinha e ouviu a mãe resmungar a situação incômoda em ter uma estranha a
espiando no banheiro.
―
Mãe, venha comer. A sopa está pronta. ― Disse a filha, colocando o prato fundo,
já com o caldo quente na mesa. Entretanto, a mãe nada respondeu. Simplesmente,
continuou sentada no sofá, com o olhar fixo e longínquo.
A
filha suspirou. Esquecera-se de que a mãe que tivera em épocas atrás não mais respondia
como antes. Esquecera-se, por um instante, da doença. Esquecera-se de que Maria
nem mais recordava o que era ser mãe, ou o que era ser Maria. Mesmo assim, a
mulher aproximou-se da senhora. Fez gestos para incentivar sua movimentação. Auxiliou-a
para levantar e a encaminhou gentilmente até a mesa. Sentando-a, por fim, na
cadeira.
―
Olhe, fiz especialmente para você. Sei que não se lembra, mas essa receita é de
sua autoria. A senhora costumava preparar quando eu sentia com muito frio e
precisava aquecer por dentro, como ouvia sempre dizer.
A
mãe apenas levantou o olhar vazio para o rosto da filha. Nada disse, como quem
nada tivesse vivido. Apenas abriu levemente a boca em sinal de querer tomar a
sopa. A filha, compreendendo com um semblante triste a mensagem simples, sentou
ao lado, entregou-lhe a colher e a ajudou com o necessário durante a refeição.
―
Ficarei aqui esta noite no lugar de Leonardo, certo? ― disse a filha,
recolhendo os pratos, levando-os até a pia.
―
Leonardo? Não me recordo desse nome. ― respondeu a idosa. Irritada com a
própria situação de dependência qual rondava ao seu redor, exclamou, em
seguida:
―
Deixe-me sozinha um pouco! Não preciso de ninguém aqui comigo.
―
Pode ficar calma. Dormirei na outra cama, assim não atrapalharei.
Maria
assentiu com a cabeça. Novamente, o olhar fixo retornou. Ela queria fazer
algo..., porém, como era o nome? Qual era a coisa que se chamava aquele objeto?
Sim, ela queria coisar na Coisa. Como? Começava a enfurecer-se. Era impossível.
Nenhuma palavra vinha a sua mente para que ela pudesse deduzir a imagem daquilo
projetado em sua imaginação. Pesquisava em seu vocabulário, esse antes tão rico
e belo, agora destruído e caótico. Ela era uma mulher que amava ler, todavia,
nem mais relembrava os nomes das inúmeras obras que outrora amara, pois dificilmente
conseguia lembrar-se como fazia para traduzir em palavras as mais básicas
atitudes e emoções. Isso era o pior de sua morte lenta.
Irritada já com a imensa pesquisa vã em sua
mente, empurrou, com uma força resgatada de não se sabe onde, o copo de cerâmica
ao chão. A filha assustou-se imediatamente, olhando para trás. A mulher mirou
rapidamente os cacos do objeto antes deixado ali para que ela tomasse água com
os remédios, espalhados agora sobre o piso branco. Barrou, com uma ordem, sua
mãe, qual insistia em levantar-se pisando sobre os pedaços cortantes. Sem
demora, a filha buscou a vassoura com a pá e limpou o recinto. Logo após a
limpeza, a senhora levantou-se, fazendo uso de passos lentos até o seu quarto.
Aliviada,
a filha deu um longo suspiro. As olheiras de sua face já exprimiam todo o
cansaço de ter cuidado da idosa durante o dia todo. Poderia, enfim, acalmar-se
um pouco com o descanso da doente.
“Aqui
está”, pensou Maria, ao observar a cama antes de deitar-se. “ A Coisa”.
Ainda
sem obter uma resposta sobre qual a melhor palavra para definir o que chamava
apenas de Coisa, acomodou seu corpo magro debaixo das cobertas.
De
madrugada, pouco tempo antes do amanhecer, algum barulho na rua despertou Maria
subitamente. Provavelmente tinha sido apenas o som dos carros, contudo, isso a
acordou e ela não conseguiu dormir novamente. Afinal, agora que havia aberto os
olhos, um medo havia arrebatado seu coração. O medo do escuro. Nunca o tivera,
porém, após a velhice já afetar seu corpo e mente, os temores eram muitos.
Entretanto,
além do medo, sentiu algo diferente dentro de si. Ela não sabia explicar
direito. Mas, era uma vontade de sair dali. Correndo, se fosse possível.
Ansiava ir para bem longe da escuridão e para bem longe da estranheza daquela
casa antiga que havia morado durante anos. De súbito, uma espécie de espírito
adolescente a tinha cometido. Não sabia se estava em plena consciência naquele
momento, ou se podia identificá-lo como um período de interrupção daquilo que
extinguia todo seu conhecimento.
Enfrentando
seu maior medo, o escuro, levantou da cama, pé após pé e alcançou o
interruptor. A luz espalhou-se pelo quarto, e um pequeno sorriso abriu-se,
revelando um semblante aliviado.
Em seguida, sentiu frio. Avistou o sobretudo
preto da filha, pendurado em seu cabideiro. Sem pensar, pegou a roupa e a
vestiu por cima do pijama, juntamente com um sapato fechado.
Em
silêncio, sem que a jovem pudesse acordar, a mãe aproveitou que as chaves
estavam na fechadura, as girou, e saiu cautelosamente da casa para as infinitas
ruas da cidade.
Um
sentimento, o qual Maria não conseguia identificar o nome, a ocorreu. Como sua
nomeação formal havia fugido, apenas pensou sentir-se como um pássaro, contudo,
com uma das asas quebradas, pois seus passos eram muito lentos.
Sua
casa localizava-se ao centro de uma cidade do interior paulista. O bairro não
era o mais seguro, todavia, ninguém ali haveria de mexer com uma senhora
debilitada e de pijama. A essa hora, o dia já começava a clarear os prédios.
Maria passava por eles, encantada com tudo aquilo, extremamente maravilhada com
o velho desconhecido. Adentrava em um novo mundo para si, onde nem tudo se
resumia a face descorada vista no banheiro.
Observava
os diversos lugares diferentes, olhava a tudo, sem conseguir pertencer a nada.
Não haviam lembranças, sentimentos por ali. Não existia nem uma gota disso, a
medida que deixara de possuir até mesmo as palavras, os substantivos de cada
objeto, de cada bela visão.
Seus
passos, já lentos, foram reduzindo ainda mais o ritmo. Suas pernas começaram a
doer. O sol ardia, ainda tímido, no alto. A movimentação de carros iniciava seu
fluxo. A vida entrava novamente em seu ritmo. Entretanto, não ela, não Maria.
Maria estava perdida. Pensara errado ao tentar encontrar a si mesma em uma
aventura adolescente. Afinal, que faria ela? Velha, debilitada, frágil, andar
no meio de toda a turbulência cotidiana?
Após
aqueles momentos de devaneios, deu-se conta de estar sozinha, em um local
inusitado. Isso foi suficiente para desesperá-la. Contudo, de que valia o
desespero, se nem conseguia agir como quem o possuía?
Olhando
as inúmeras lojas ao redor, seus olhos fundos miraram uma loja de colchões e
camas. Suas emoções de temor mescladas a solidão cessaram.
Por
alguns minutos, finalmente, ela conseguiu lembrar de uma faceta de si.
Foi
invadida por inúmeras fases de sua vida, mas agarrou-se a apenas uma. Recordou
de sua infância, das memórias mais profundas, quase já esquecidas. Estava ela
com sua mãe já há muito falecida, num pequeno cômodo. Maria, sentada no chão,
chorava de medo. Ela havia acabado de mudar-se para a cidade em que se
localizava atualmente. O pai a havia abandonado junto a mãe. Com o dinheiro
recebido da demissão da mãe no último serviço que trabalhara, ela comprou uma
cama com um delicioso colchão para as duas.
Lembrou-se
exatamente daquele dia em que vira sua mãe esbanjar alegria ao entrar com
aquele enorme colchão no quarto. Depois, viu-se durante a primeira noite
naquele local, abraçada e acolhida pelo calor maternal da mulher qual a criara.
Lágrimas
escorreram espontaneamente por sua pele áspera. Talvez, nunca mais pudesse ter
tais minutos de recordações, capazes de preencherem seu peito do mais puro amor
existente.
Uma
mão encostou em seu ombro direito. Maria virou lentamente o rosto, vendo a
filha, que logo disse:
―
Graças a Deus a encontrei! Nunca mais faça isso comigo!
A
senhora apenas acenou com a cabeça e voltou a fitar a vitrine com os
inúmeros... o que? Como chamava-se mesmo aqueles objetos responsáveis por
despertar dentro de si tamanhas recordações? A Coisa... não, essa não era a
nomeação correta.
―
Qual o problema, mãe? Vamos para casa, está frio. Que tanto olha esses
colchões?
Sim!
Colchões! Finalmente havia se lembrado da palavra. Então aquilo era um colchão
e as outras... Ah sim, camas! A
felicidade envolveu seu coração dando-lhe a mais bela sensação, mesmo ela
sabendo que em breve se esqueceria novamente dos nomes. Entretanto, naqueles
pequenos segundos, fechou os olhos aliviada e apenas respirou. Era como se,
enfim, tivesse voltado a viver...
―
Mãe? A senhora está bem? ― questionou a filha, vendo o comportamento diferente
da idosa.
A
intervenção foi suficiente para que as memórias esvaíssem de sua mente, como a
água escorre entre os dedos e a vida escorre entre o tempo.
Maria,
já parada, olhou curiosa frente a vitrine. Quem era aquela senhora que se
mostrava diante de si? Ah, a semelhança extinguia qualquer dúvida. Novamente
era incomodada pela estranha do banheiro, agora não mais somente do banheiro.
―
Até aqui você me persegue? ― indagou a mãe para seu vago reflexo no vidro.
―
Enquanto você viver, mãe, ela sempre te perseguirá, e não há nada que possa
fazer quanto a isso. ― afirmou a filha ― Agora, vamos. Prepararei um chocolate
quente para você... Isso, venha.
Devagar. Um pé, depois o outro.

